William Burroughs, o escritor dos roqueiros
De Bowie a Beatles e de Reed a Cobain, muita gente demonstrou adoração
William Seward Burroughs II (1914-1997) não era cantor nem tocava guitarra. Gravou fitas e discos, mas falando e experimentando com sons. Mesmo assim, o escritor beat foi altamente influente para o rock, como atesta o livro William S. Burroughs and the Cult of Rock'n'Roll, de Casey Rae, publicado em 2019.
O autor faz um inventário de quem se inspirou, pediu a bênção, gravou participação dele em discos ou se encontrou pessoalmente com Burroughs.
Também detecta o efeito que seus livros tiveram sobre roqueiros. A narrativa mais tradicional sobre drogas e vida das ruas Junkie (ou Junky) (1953) e a sátira verborrágica e delirante Naked Lunch (Almoço Nu, 1959) são as obras mais famosas e mais citadas.
Mas The Soft Machine (1961), Nova Express (1964) e The Wild Boys (1971) também mexeram com cabeças musicais. Bem como Call Me Burroughs (1965), o primeiro LP com o escritor falando.
A atitude anti-sistema e toda forma de controle de Burroughs conquistou os contestadores.
E a técnica do cut-up (recortar palavras ou frases de um texto e remontá-lo ao acaso, obtendo outro texto) encantou artistas mais ousados, como David Bowie – que está na capa do livro com Burroughs, numa foto do encontro deles (com o escritor entrevistando o cantor) registrado nas páginas da revista Rolling Stone em 1974.
Sem armas para Cobain
Ao montar seu panorama sobre o culto dos roqueiros, Casey Rae acaba fazendo também uma biografia de Burroughs com cronologia solta. Desde St. Louis, onde nasceu, até Lawrence, onde morreu, passando por Cidade do México, Tangier, Londres, Nova York e onde mais ele tenha botado os pés.
O autor contextualiza o que acontecia na vida de Burroughs, onde ele estava morando e qual a obra em que trabalhava para inserir algum dos coadjuvantes principais do livro.
O primeiro capítulo centra o foco em Kurt Cobain, do Nirvana. Com cada um gravando sua parte separadamente, a quilômetros de distância, Kurt e Burroughs gravaram a faixa “The 'Priest’ They Called Him” em 1992.
Enquanto Burroughs lê o conto-título, Cobain faz barulhos livres na guitarra distorcida, ocasionalmente tocando algo reminiscente a “Silent Night” (para nós, "Noite Feliz”).
No ano seguinte, o disco saiu. E Cobain foi visitar Burroughs na tranquila casa em Lawrence, Kansas (EUA) em que o escritor morou até morrer.
Pessoas próximas a Cobain trabalharam para que o encontro acontecesse. Para ver se conhecer pessoalmente um ex-junkie na terceira idade tirava de sua cabeça pensamentos sombrios de suicídio e o estimulava a se livrar do vício em heroína.
Cobain foi extremamente reverente e demonstrou contentamento com o encontro. Burroughs, com toda sua experiência, radiografou o visitante e preferiu não mostrar a ele sua coleção de armas.
Não adiantou muito (Kurt se suicidou com um tiro em 1994), mas a intenção de Burroughs foi boa.
Gigantes dos anos 1960
Os capítulos seguintes falam de outros pesos pesados do rock. Dos Beatles, Burroughs viu Paul McCartney compor “Eleanor Rigby” em 1966 quando estava hospedado no famoso “apartamento do Ringo” em Londres – onde depois morreriam Mama Cass Elliot e Keith Moon.
E, é claro, Burroughs foi uma das várias personalidades cuja imagem foi incluída na capa de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, o psicodélico álbum dos Beatles de 1967.
Quanto aos Rolling Stones, a maior influência exercida por Burroughs foi quando disse que o grupo de músicos tradicionais marroquinos The Master Musicians of Joujouka eram uma banda de rock de 4 mil anos.
Brian Jones, guitarrista e co-fundador dos Stones, ouviu os Joujouka e ficou obcecado até conseguir gravar os músicos em ação em 1968, com a ideia de fazer um LP.
Jones morreu em 1969 sem ver o disco lançado. Isso só aconteceu em 1971 pelo selo Rolling Stones Records, com o título Brian Jones Presents the Pipes of Pan at Joujouka.
Do tripé de gigantes dos anos 1960, sobrou Bob Dylan. E ele se encontrou pessoalmente uma única vez com Burroughs em 1964, num café em Nova York.
Mas o cantor-compositor e futuro Nobel de Literatura absorveu muita coisa do escritor beat. Não só em suas letras quilométricas e cheias de imagens desconexas, como em seu único livro de ficção, Tarantula, concluído em 1966 e publicado em 1971.
Bowie
A safra seguinte de rock stars também desfrutou de Burroughs. David Bowie foi, disparadamente, quem mais bebeu nessa fonte.
Bowie abusou de cut-ups em suas letras de 1974 até seu último álbum, Blackstar, lançado em 2016 dois dias antes de sua morte. Ele chamava a técnica da montagem de recortes criada por Burroughs de “uma forma de Tarô ocidental".
Não ficou nisso. Ele montou e desenvolveu seus personagens com inspiração em Almoço Nu e Nova Express, especialmente na distopia do LP Diamond Dogs (1974).
E as gangues de The Wild Boys (junto com as de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess) resultaram em Ziggy Stardust, mais famosa persona da carreira de Bowie.
No final de 1973, Bowie e Burroughs se encontraram em Londres pouco antes de o escritor se mudar para Nova York. Era um cara a cara de encomenda para a revista Rolling Stone que foi publicada em fevereiro de 1974.
Burroughs era o entrevistador, Bowie era o astro retratado. O renomado fotógrafo Terry O’Neill fez a imagem da capa.
À época, Bowie estava no "topo do mundo” pop-rock. Se Burroughs, já um idoso aos 60 anos, precisava de algum endosso para ser popular entre roqueiros, isso bastou.
Page
Em fevereiro de 1975 em Nova York, Burroughs repetiu a função de entrevistador de um rock star. Conversou com Jimmy Page, guitarrista e líder do Led Zeppelin para a revista Crawdaddy.
Page tinha muitos interesses em comum com Burroughs e falou de ocultismo e o mago maldito Aleister Crowley, de música árabe, indiana e dos Master Musicians of Joujouka, de arte pré-rafaelita e, é claro, de Led Zeppelin.
Dias antes do encontro, Burroughs assistiu ao show do Zeppelin no Madison Square Garden em Nova York para ter embasamento. Em seu texto, ele ressalta o ritual sonoro que envolvia a plateia.
“O rock pode ser visto como uma tentativa de romper com este universo morto e sem alma e reafirmar o universo da mágica", escreveu Burroughs na Crawdaddy. “A música, como todas as artes, é mágica e cerimonial na origem. (...) Um concerto de rock é, na verdade, um rito que envolve a evocação e a transmutação de energia".
Após a entrevista, o escritor e o guitar hero foram beber margaritas num bar próximo ao apartamento de Burroughs, apelidado de Bunker – um imóvel bizarro que simplesmente não possuía janelas…
Reed
Outro ilustre visitante do Bunker foi Lou Reed em junho de 1979. Um encontro breve com o roqueiro literato absolutamente pilhado e inquisitivo – e Burroughs simpatizou com a figura.
Reed tinha um show marcado no Bottom Line naquela noite. Quando a hora de ir para a apresentação chegou, ele se despediu dizendo: "Bom, quem vai tocar não pode ficar”.
Talvez Reed tenha ficado tão, digamos, elétrico por puro nervosismo de conhecer pessoalmente alguém tão importante para seu trabalho.
Segundo Reed, Burroughs foi “a pessoa que arrombou a porta… ele sozinho tinha a energia para explorar a psique interior sem filtro. (...) Mudou minha visão a respeito do que se pode escrever e como".
Ele passou a vida louvando Naked Lunch, embora suas letras tivessem mais influência de Junkie – tanto pela narrativa mais direta como pelo vício em heroína, que Reed retratou “I'm Waiting for the Man” e "Heroin", nos tempos em que era do Velvet Underground.
Poucos anos depois, em 1981, Burroughs iria colaborar com o trabalho de estreia em disco de Laurie Anderson, a artista experimental que seria a mulher de Reed de 1992 até a morte dele em 2013.
Punks e pós-punks
Os punks americanos e ingleses também se orgulhavam de demonstrar seu apreço a Burroughs – e vice-versa. O escritor enviou uma carta aos Sex Pistols em apoio a toda censura branca que o grupo sofreu no Reino Unido em 1977 com seu compacto "God Save the Queen”, que era nada lisonjeiro em relação à rainha Elizabeth II.
Da turma nova-iorquina, Patti Smith desenvolveu uma relação com Burroughs em que ele era praticamente uma figura paternal.
E Chris Stein, do grupo Blondie, tornou-se um amigo que ia frequentemente à casa de Burroughs em Lawrence – e o Kansas não é pertinho de Nova York. Thurston Moore e Kim Gordon, do Sonic Youth, também peregrinaram até o lar de Burroughs.
A partir dos anos 1980, alguns artistas contaram com a participação de Burroughs em projetos musicais, além das já citadas participações em discos com Kurt Cobain e Laurie Anderson.
Em 1985, Burroughs fez uma colaboração com – por incrível que pareça – um jovem chamado Gus Van Sant, hoje mais conhecido como cineasta.
Van Sant tocou todos os instrumentos para construir uma base para a voz do escritor no álbum The Elvis of Letters, de 1985. O livro especula que Van Sant poderia ter sido um astro do grunge pelo que demonstrou na gravação.
Burroughs, o “crooner”
Tom Waits contou com Burroughs como parceiro no musical The Black Rider, cujo álbum foi gravado em 1989 (a peça estreou em 1990) e lançado em 1993.
The Black Rider conta com uma faixa em que Burroughs CANTA. Com uma voz rouca, ele se arrisca com a melodia do standard americano “T’Ain’t No Sin”.
O "crooner” beat também mostrou seus dotes no álbum Dead City Radio, de 1990. É um disco falado, mas Burroughs canta outro standard, "Falling in Love Again", célebre música-símbolo da atriz alemã Marlene Dietrich no filme O Anjo Azul (1930).
Burroughs participou ativamente de "Just One Fix", faixa do álbum Psalm 69 (1992) da banda americana Ministry. Não apenas falou na música como apareceu no videoclipe.
Em 1993, o álbum Spare Ass Annie and Other Tales trouxe Burroughs lendo trechos de seus livros com música providenciada pelo grupo de hip-hop Disposable Heroes of Hiphoprisy.
O R.E.M. fez uma versão mais lenta de sua música "Star Me Kitten”, do álbum Automatic for the People (1992), e contou com a participação de Burroughs. Essa nova versão saiu na coletânea de vários artistas Songs in the Key of X: Music from and Inspired by the X-Files, de 1996.
Uma última colaboração de Burroughs só veio a público três anos depois de sua morte. Ele lê versos escritos por Jim Morrison com acompanhamento dos três sobreviventes do The Doors na faixa “Is Everybody In?", do álbum Stoned Immaculate: The Music of the Doors (2000).
O escritor morreu de infarto aos 83 anos em 2 de agosto de 1997 em sua casa em Lawrence. Mas foi sepultado em sua cidade natal, St. Louis, próximo ao mausoléu de seu avô paterno William Seward Burroughs I, o inventor da máquina de calcular.
Eu tenho essas gravações do Kurt com o Burroughs por conta de algum livro que tinha comprado sobre o Cobain. Me fez lembrar delas. Belo texto!
Tá espetacular essa edição 👏👏👏