Não pule a parte antes do Blondie
Autobio de Chris Stein é rica antes mesmo de ele criar a banda com Debbie Harry
"Meus pais se conheceram no Partido Comunista em Syracuse, Nova York".
Qualquer autobiografia que comece com uma frase fora da curva como esta merece que a leitura continue, mesmo que você desista depois.
Mas provavelmente não haverá desistência no caso de Under a Rock: A Memoir, o livro de Chris Stein (1950-), guitarrista co-fundador da banda Blondie e ex-marido da vocalista Debbie Harry (que assina o prefácio).
Stein concluiu a escrita em 2023 e a obra foi publicada em junho de 2024. Está bem atualizada, mas não inclui o anúncio de um novo álbum do Blondie para 2025, feito há poucos dias.
Em muitas biografias ou autobiografias, dá até para pular sem medo toda a parte até o momento em que o/a retratado/a começa a carreira que lhe deu fama (que é a razão primordial para você ter pegado o livro para ler).
Recordações de infância e adolescência costumam ser modorrentas, quando não descambam para a pieguice.
Mas Chris Stein escreve bem demais e tem um distanciamento saudável e sem sentimentalismo de seus primeiros anos no Brooklyn nova-iorquino.
Juventude movimentada
O filho de dois comunistas americanos ("Tenho certeza absoluta de que mamãe e papai só se envolveram com a parte teórica e nunca explodiram fábricas", ele escreve com humor) teve uma liberdade de escolhas e de expressão que lhe ajudaram demais.
Uma juventude com direito a professores sádicos e a um encontro com Sammy Davis Jr. (então em seu auge), com direito a autógrafo, na porta dos estúdios que a NBC mantinha na região em que Chris morava. Recomenda-se ler e não pular páginas. Vá lá, pode-se até pular alguns trechos mais emperrados. Mas não várias páginas.
Porque pulos muito longos podem lhe privar de "causos” impagáveis. Como o delírio de Chris de achar que, sempre que alguém botava o White Album dos Beatles na vitrola, o quarteto de Liverpool pegava seus instrumentos e tocava ao vivo para transmitir as músicas para aquela determinada vitrola.
Sim, Chris já experimentava drogas nessa época…
Aliás, ele vai direto ao ponto de forma objetiva ao longo do livro inteiro. O vício em heroína e os mais de 20 anos de tratamento com metadona são sempre descritos sem melodrama, mesmo nas piores situações.
O mesmo se dá com a separação de Debbie Harry nos anos 1980 é resumida sem drama: Chris diz que ficou mal umas duas semanas, depois melhorou e hoje a ex-mulher é considerada parte de sua família nuclear, junto com a atual esposa e filhas.
Apenas no epílogo Stein demonstra um imenso nó na garganta compreensível depois de uma tragédia na família. Mesmo assim, ele conclui o livro com dignidade.
Imaginação sem técnica
Depois de todas as peripécias do jovem Chris nos anos 1950 e 1960, a década de 1970 traz um colorido diferente.
Já mexendo com música, bandas e gravações, Stein se mudou do Brooklyn para Manhattan. Conheceu Debbie e começou a montar uma banda caçando músicos até ter uma formação completa.
Chris e Debbie estavam no então decadente bairro do Village que, apesar disso, vivia uma efervescência cultural que girava em torno do bar/clube CBGB's, que deu chance a bandas e artistas novos (Blondie, Television, Ramones, Talking Heads e grande elenco) que formaram o punk americano.
Músico, Stein descreve locais de ensaio (muitas vezes em seu próprio loft), aparelhagem de gravação e processo de composição das músicas que levaram o Blondie ao sucesso em sua primeira fase da carreira em disco, de 1976 a 1982.
Chris se diverte ao lembrar que, ao gravar seu primeiro LP, a banda foi considerada com muita imaginação musical mas ainda sem a técnica instrumental para realizar o que criava…
Também é interessante quando ele relembra criações inovadoras do Blondie, como misturar rock e disco music em "Heart of Glass” e rock com rap em "Rapture” – cujo videoclipe conta com uma ponta do artista plástico Jean-Michel Basquiat (1960-1988) como DJ.
Stein também conta como foi o processo de convencer Debbie a retornar com o Blondie em 1997, depois de 15 anos de hiato. Vale lembrar que a banda simplesmente parou com as atividades em 1982, mas nunca declarou que tinha se separado.
Um alerta: se você pegar Under a Rock para ler pensando em saber mais sobre Debbie Harry, desista. É melhor ler a autobiografia dela mesma, Face It: A Memoir, publicado em 2019 (no Brasil, saiu como Face a Face em 2022 pela Alta Life).
O livro de Chris Stein é para saber sobre ele. E o Blondie também, é claro.