Lou Reed em detalhes
Lançada agora no Brasil, nova biografia do roqueiro histórico é cheia de minúcias
É necessária mais uma biografia como Lou Reed: O Rei de Nova York, do jornalista americano Will Hermes? Afinal, há três obras relativamente recentes sobre o artista que é uma das figuras fundamentais do rock.
A resposta é sim.
Dirty Blvd. (2015), de Aidan Levy, Transformer (2016), de Victor Bockris (contemporâneo de Reed no núcleo Velvet Underground/Andy Warhol nos anos 1960), e Lou Reed: A Life (2017), de Anthony DeCurtis são bios boas. Mas o livro de Hermes expande o que já se leu e adiciona muitos fatos.
Lançado em 2023 nos EUA e agora no Brasil pela BestSeller (R$ 179,90, edição impressa de 560 páginas), o volume de Hermes atinge um nível altíssimo de minúcia e detalhismo sobre a vida de Lou Reed (1942-2013), especialmente nos primeiros 40 anos do roqueiro.
Algo fez diferença. Hermes foi o primeiro biógrafo a poder ter acesso aos arquivos pessoais de Lou Reed que foram doados por sua viúva Laurie Anderson à New York Public Library e está aberto a consultas desde 2018 (leia mais abaixo sobre esses arquivos).
Quebra-cabeça
Com esse material, mais entrevistas com pessoas relacionadas a Lou e reciclagem enriquecida de fatos contados em biografias anteriores, Hermes monta o complexo quebra-cabeça que o artista era desde bem jovem.
No período pré-Velvet Underground (até 1965), o autor conta fatos, dá endereços e esclarece muito sobre os anos formativos de Reed.
Passa pela terapia de eletrochoque a que Lou foi submetido pelos pais para tentar aplacar suas tendências homossexuais e pelas visitas a bares gays clandestinos não muito tempo depois. Também coloca foco na namoradinha heterossexual de Lou nessa época.
O provocador de língua ferina e cruel que adorava guerra psicológica também é exposto nas páginas. Assim como prosas e versos escritas por Reed, um compositor que ambicionava que suas composições fossem encaradas como literatura musical.
Comparecem também as primeiras (e muitas outras depois) aventuras com drogas e os primeiros passos do que se transformaria numa carreira musical até formar sua primeira banda realmente digna de nota, o Velvet Underground.
A fase Velvet (1965-1970) é riquíssima em fatos, dos primeiros shows à adoção cultural do artista plástico Andy Warhol, que vivia o topo da fama por seu papel na consagração da Pop Art, até a melancólica saída de um desorientado Lou da banda que ele próprio fundou.
O relato passa até por detalhes que são uma delícia para quem gosta de barulho e quer saber como ele é produzido.
O autor disseca brevemente a combinação de novos captadores envenenados na guitarra com amplificadores potentes para obter volume e distorção quase pornográficos na produção de White Light / White Heat (1968), o segundo e mais ensurdecedor álbum do Velvet Underground. Esses aspectos mais técnicos são raros na maioria das biografias.
Os anos 1970 são cheios de contradições. Lou alcança a maior fama que já teve na vida com a música "Walk on the Wild Side" e o álbum "Transformer", em 1972. No final da década, estava praticamente falido e meio esquecido.
Também foi a fase em que Lou se engajou mais explicitamente em toda a cultura gay/trans e na celebração do lema "sexo, drogas & rock'n'roll", chegando a encenar uma aplicação de heroína em seu braço com uma seringa cenográfica durante um show.
Na vida real, nada havia de cenografia e Reed se safou de algumas overdoses bem perigosas. Além de, supostamente, saber produzir sua própria anfetamina e se prevenir quanto aos efeitos graças a livros de química e medicina que eram de fácil acesso em seu apartamento.
O livro também faz o retrato mais completo até agora de Rachel, a transgênero com quem Lou teve uma união estável durante três anos (se é que algo da vida dele nos anos 1970 possa ser chamada de estável).
"Run, Run, Run"
O autor não segurou o mesmo ritmo a partir dos anos 1980. Não que ele não traga descobertas interessantes. Mas, no geral, o texto fica mais acelerado e corriqueiro, sem tantos tesouros quanto nas décadas anteriores.
Talvez tenha "ajudado" o fato de Lou se tornar menos exposto e mais recolhido em sua vida privada, com seu novo visual de professor sério e os casamentos héteros com Silvia Morales e, depois, a cantora e artista performática Laurie Anderson, com quem viveu até o último suspiro.
O tratamento mais ligeiro nos priva de mais revelações de lupa sobre, por exemplo, a feitura de uma obra-prima de Reed como o álbum New York (1989).
Mas há boas informações sobre a reunião com John Cale, seu ex-parceiro no Velvet Underground, no álbum Songs for Drella (1990), um tributo a Andy Warhol (1928-1987). E sobre a frustrada e anticlimática reunião da formação original dos Velvets em 1992/93.
Além da música, Hermes destaca as duas paixões da fase madura de Reed, a fotografia e o Tai Chi Chuan.
A correria na parte final não desmerece Lou Reed: O Rei de Nova York. É um tijolo de 560 páginas que se sustenta como um "tudo que você queria saber sobre Lou Reed". Ou quase tudo.
Os arquivos de Lou Reed
Tão importante para as pesquisas do biógrafo Will Hermes, o vasto arquivo pessoal de Reed foi doado em 2017 por sua viúva Laurie Anderson à New York Public Library, que liberou o material para consulta do público no ano seguinte. O período abrangido vai de 1958 a 2015 (dois anos depois da morte de Lou).
As consultas do material físico precisam ser agendadas com antecedência na grande biblioteca nova-iorquina.
Os arquivos foram divididos pela NYPL em oito séries:
Série I: Gravações
Áudios e vídeos de Lou, com gravações domésticas, de estúdio, de shows e aparições em TV e filmes.
Série II: Empresa
Material e correspondência reunidos pela empresa de Reed, a Sister Ray Enterprises. Muitos itens de interesse meramente administrativo.
Série III: Turnês e Apresentações
Tudo relacionado às turnês e shows de Lou Reed, envolvendo sua carreira solo e a reunião do Velvet Underground. Tem de contratos a itinerários das excursões, de listas de pagamentos e notas fiscais.
Série IV: Fotografias
Fotos em que Lou Reed aparece e outras em que ele mesmo estava com a câmera. São tantas que foram divididas em sete subséries. Elas vão da época do Velvet Underground até a prática obsessiva de Tai Chi Chuan pelo músico.
Série V: Escrita
Reúne livros, textos de contracapa de LPs, letras de músicas, clipping de matérias de jornais e revistas, cadernos de anotações, poesia, contos, rascunhos, manuscritos, discursos…
Série VI: Arte e Design
Capas de disco, layout de livros, instalação artística para o álbum de microfonias Metal Machine Music (1975), pôsteres…
Série VII: Imprensa
Matérias de publicações e material de divulgação dos lançamentos de álbuns. Tudo ordenado cronologicamente.
Série VIII: Coleção Pessoal
Itens da vida particular de Lou Reed. Câmeras fotográficas, objetos de arte, uma fantasia de Halloween, o par de óculos, a coleção de vídeos e discos, correspondência que inclui uma carta assinada por Paul McCartney quando este enviou seu álbum Flaming Pie (1997) ao colega de profissão…