Soul music: uma estante básica
Algumas dicas de livros sobre a música negra americana dos anos 1960
Adoro soul music. Mexem comigo a emoção explícita, cantores/as que fazem o diabo com suas vozes (uns com entrega total, outros com sutileza), baixo e bateria pulsantes, pianos com ginga, órgãos de outro mundo, guitarras sem virtuosismo que marcam o ritmo com exatidão sobre-humana, sopros comoventes…
O auge desse estilo de música negra americana foi nos anos 1960, mas a história já tinha começado nos anos 1950 com pioneiros do soul como Ray Charles (1930-2004), James Brown (1933-2006) e Sam Cooke (1931-1964).
Nos 60s, os heróis da alma foram Otis Redding (1941-1967), Sam & Dave, Booker T. & The MGs, Isaac Hayes (1942-2008) e a turma da gravadora Stax; Marvin Gaye (1939-1984), Stevie Wonder (1950-), Smokey Robinson & The Miracles, The Supremes, The Temptations, The Four Tops e outros artistas da gravadora Motown; Aretha Franklin (1942-2018); Wilson Pickett (1941-2006); Solomon Burke (1940-2010), Al Green (1946-)...
Muita gente boa, incluindo quase anônimos de um sucesso só, como James & Bobby Purify, The Bar-Keys e Percy Sledge (1940-2015). E inovadores que ampliaram a soul music para algo mais ecumênico junto ao rock, como o grupo Sly & The Family Stone, ou já formatando a transformação do soul em funk, como a banda The Meters.
Saber mais sobre soul music requer ler bem em inglês. Dos livros que indico abaixo para formar uma – na minha avaliação – estante básica do estilo, apenas dois (ou três, considerando uma indicação secundária) foram publicados no Brasil.
Brother Ray: Ray Charles' Own Story, de Ray Charles e David Ritz
Depois de um início de carreira pouco promissor imitando o jazz sutil de Nat King Cole (1919-1965) no piano e nos vocais, Ray Charles descobriu o ovo de Colombo quando foi contratado pela gravadora Atlantic em 1952: adaptar intensas músicas gospel cantadas nas igrejas protestantes africanas-americanas usando letras seculares e a batida do rhythm'n'blues. Basicamente, Charles inventou a soul music assim.
Sua autobiografia Brother Ray, em parceria com o jornalista David Ritz (que vai aparecer mais vezes nesta lista), foi publicada originalmente em 1978 e a última grande atualização foi em 2004, ano de sua morte e do lançamento da cinebiografia Ray. Até onde sei, não foi publicada no Brasil.
O Dia em que James Brown Salvou a Pátria, de James Sullivan
Em 1968, James Brown tinha 12 anos de carreira fazendo sua soul music que já prenunciava o funk e era o Soul Brother No. 1 para os negros americanos – talvez, naquele momento, seu maior ídolo musical.
A prova de fogo de Brown veio com o assassinato do pastor e principal militante pelos direitos civis dos africanos-americanos Martin Luther King Jr. (1929-1968).
Brown tinha um show marcado em Boston e teve que lutar muito para que o show acontecesse como forma de apaziguar os ânimos da comunidade negra da cidade.
O show, transmitido ao vivo pela TV, serviu para evitar um confronto racial sangrento nas ruas de Boston e, talvez, em outras cidades dos EUA. E demonstrou a estatura de Brown como ídolo popular.
Este livro, originalmente publicado em 2008 como The Hardest Working Man: How James Brown Saved the Soul of America, teve edição brasileira três anos depois.
Ele contextualiza a carreira de James Brown até aquele evento histórico. Mas quem preferir saber mais sobre a vida do soul man, há outro livro também publicado no Brasil: James Brown: Sua vida. Sua música, de R.J. Smith.
Dream Boogie: The Triumph of Sam Cooke, de Peter Guralnick
Principal vocalista do grupo gospel The Soul Stirrers, Sam Cooke lançou-se numa carreira solo pop seguindo a receita de Ray Charles e James Brown de refazer o sacro com roupagem laica. De cara, estourou com a balada “You Send Me”, em 1957.
Com sua classe e sua voz límpida, Cooke se tornou influência e guia para muitos outros cantores soul que viriam depois. Em 1964, criou o que se tornaria um hino para a luta dos negros americanos, “A Change Is Gonna Come”. Dez meses depois de gravá-la, Cooke foi assassinado num motel numa história muito mal explicada.
The Last Sultan: The Life and Times of Ahmet Ertegun, de Robert Greenfield
Filho de um diplomata turco, bem criado e cheio de cultura, Ahmet Ertegun (1923-2006) se apaixonou cedo pela música negra americana. E isso o levaria a fundar em 1947 a gravadora Atlantic Records.
A Atlantic foi fundamental para o jazz, o rhythm'n'blues e a soul music. Foi na Atlantic que desabrocharam os talentos de Ray Charles, Wilson Pickett e Aretha Franklin. A bio de Ertegun não se limita a soul, mas tem muito sobre isso.
Motown: Music, Money, Sex, and Power, de Gerald Posner
Em meados dos anos 1960, a gravadora Motown, de Detroit, era a mais poderosa empresa de propriedade de um negro nos EUA. No caso, Berry Gordy Jr. (1929-), que fundou a companhia com um empréstimo familiar em 1959. E veio a instituir um estilo sutil e muito bem ensaiado de soul music.
Por um tempo, pareceu que os estúdios da Motown (apelidados de “Hitsville U.S.A.”) eram incapazes de produzir um hit medíocre.
Havia espaço para a elegância de Marvin Gaye e dos The Miracles, para o glamour das The Supremes (que só tiveram menos 1ºs lugares na parada americana que os Beatles nos anos 1960) e para a intensidade precoce de Stevie Wonder.
O livro de Gerald Posner fala da música e também dos inúmeros bastidores que levaram a gravadora a diluir seu ímpeto inicial. Especialmente a relação entre Gordy e Diana Ross (1944-), líder das Supremes e depois estrela solo.
Soulsville, U.S.A.: The Story of Stax Records, de Rob Bowman
Se a Motown era “Hitsville, U.S.A.”, a Stax Records (e seu sub-selo Volt) era “Soulsville, U.S.A.”. Porque era a casa de Otis Redding, da banda instrumental Booker T. & The MGs (que acompanhava quase todos os artistas do selo), da dupla Sam & Dave, da cantora Carla Thomas (1942-) dos cantores Isaac Hayes, Rufus Thomas (1917-2001) e Eddie Floyd (1937-).
O livro acompanha o auge da gravadora de Memphis durante um acordo de distribuição com Atlantic e os anos de decadência e falência que se seguiram à trágica morte de Otis Redding num acidente de avião em dezembro de 1967. Poucas vezes um único artista representou tanto para um selo. Na época boa e na derrocada.
Sweet Soul Music, de Peter Guralnick
Se você puder ler apenas um título desta lista, este é o eleito. Meticuloso como sempre, o jornalista e historiador Peter Guralnick (autor da excepcional biografia em dois volumes de Elvis Presley e também da bio de Sam Cooke citada acima) mapeia toda a soul music de norte (Motown) a sul (Stax) e onde mais for.
O jornal americano The New York Times considerou este volume “a melhor história da soul music dos anos 1960 que alguém já escreveu ou escreverá”.
Divided Soul: The Life Of Marvin Gaye, de David Ritz
Um consistente relato da vida e da morte de Marvin Gaye, uma das vozes mais brilhantes e classudas da soul music. Marvin fez obras-primas como o álbum What’s Going On (1971) e singles inesquecĩveis como “I Heard It Through the Grapevine”, mas era uma pessoa cheia de conflitos internos, que só pioraram com muito sexo e drogas.
O pior dos conflitos era com o próprio pai, que o assassinou na véspera de seu 45º aniversário, em 1984. Pouco antes, Gaye tinha voltado às paradas após longa ausência com o hit “Sexual Healing” (1982).
Otis Redding: An Unfinished Life, de Jonathan Gould
Otis era um fenômeno. A voz potente e maleável se aliava a performances elétricas nas músicas rápidas (como em “I Can’t Turn You Loose”) e apaixonadamente intensas nas baladas românticas (como “I’ve Been Loving You Too Long” e “Try a Little Tenderness”).
Se ele já era muito bem conhecido e influente, sua espetacular apresentação no predominantemente branco Monterey Pop Festival, em junho de 1967, teve o poder de transformá-lo em superstar.
Mas essa etapa de fama foi bruscamente interrompida por sua morte na queda do avião em que viajava em turnê em dezembro de 1967..
Redding morreu apenas três dias depois de gravar aquele que foi seu maior sucesso, “(Sittin’ on) The Dock of the Bay”, 1º lugar da parada americana em 1968.
Respect: A Vida de Aretha Franklin, de David Ritz
Sim, o terceiro livro de David Ritz nesta lista – fazer o quê? Publicada nos EUA em 2014 e no Brasil em 2024, a biografia da monumental Aretha Franklin desfila todos os problemas que ela viveu quando não estava exercitando sua voz de arrepiar a espinha.
Aretha teve uma primeira fase na gravadora Columbia em que pendia mais para o jazz. Foi na mudança para a Atlantic que ela descobriu que podia usar tudo que aprendeu e sentiu cantando na igreja fazendo soul music.
Em 1967, ela explodiu com “Respect”, praticamente recriando a composição de Otis Redding. O cantor brincou: “Essa moça me roubou a canção. Agora é dela”.
Signed, Sealed, and Delivered: The Soulful Journey of Stevie Wonder, de Mark Ribowsky
Uma biografia de fôlego de um dos gênios da soul music. Stevie Wonder surgiu como garoto prodígio aos 12 anos com o hit “Fingertips”, em 1963.
Amadureceu como cantor, compositor e multi-instrumentista nos anos 1960, capaz do soul dançante de “Uptight” e baladas como “For Once in My Life” e “My Cherie Amour”.
Deslanchou como criador na década de 1970 com o peso de “Superstition” e as preocupações sociais em várias letras. E chegou ao século XXI consagrado como um dos maiores compositores pop da música americana.
Publicada originalmente em 2010, ainda é a obra com mais substância sobre Stevie.
The Soul Trilogy: Detroit 67: The Year That Changed Soul; Memphis 68: The Tragedy of Southern Soul; Harlem 69: The Future of Soul, de Stuart Cosgrove
Uma ambiciosa trilogia que associa a soul music a três dos anos mais tumultuados social e politicamente nos EUA do século XX. O escocês Stuart Cosgrove coloca foco em uma cidade fundamental para o soul por ano.
Detroit 67 (2015) se concentra na cidade da Motown bem quando a gravadora passava por transformações, como a nada sutil mudança do nome das The Supremes para Diana Ross & The Supremes.
Memphis 68 (2018) acompanha o início do fim da Stax após a morte de Otis Redding e o fim de seu contrato com a Atlantic, bem como as consequências do assassinato de Martin Luther King Jr. num hotel da cidade em 4 de abril daquele ano.
Harlem 69 (2019) traz a conversa para Nova York, mais precisamente seu gueto africano-americano, e relaciona o cenário musical (no qual destaca-se Aretha Fraknlin, que tinha sua base na cidade) à tensa ascensão dos Black Panthers no ativismo mais radical em defesa dos direitos dos negros.
P.S.: Obviamente, esta não é uma lista taxativa nem definitiva. Havia vários outros livros separados para entrar, mas o post ficaria muito mais extenso do que já é. E talvez existam outros livros dos quais não tenho conhecimento ainda.
Tem duas ou 3 minisséries de tv streaming sobre a montown, stax *hbo Max USA, e uma da Aretha franklin com a Cyntia Erivo, no hulu acho, muito boas. Conheci soul por um.filme : the commitments
PQP! Marcelo, neste post você se superou... E vai me "ferrar" na Amazon... terei que ler esta trilogia do Cosgrove, as bios da Aretha, Ray Charles, da Stax... Já "salvei" o PDF. E depois, quando puder, faça um comentário sobre os documentários desta época também. Sou fascinado por aqueles do Tom Dowd e do Muscle Shoals...