Vidas que não cabem num só volume
Ótimas bios de Sinatra e Elvis foram desmembradas para contar bem suas histórias
Algumas pessoas foram tão enormes que biografias sobre elas são desdobradas em dois ou até mais volumes. Muitos detalhes de seus feitos e personalidades seriam perdidos num único livro. Isso acontece mais frequentemente com grandes figuras da história e da política. No mundo do entretenimento, isso é mais raro, mas mereceram esse tratamento Frank Sinatra (1915-1998) e Elvis Presley (1935-1977).
Dois gigantes da música (com carreiras no cinema menos geniais mas com sua importância), eles foram agraciados por obras duplas impecáveis dignas de serem consideradas suas melhores biografias.
Sinatra, a “Voz do Século 20”, teve sua vida analisada pelo escritor e jornalista americano James Kaplan em Frank: A Voz e Sinatra: O Chefão, felizmente editados no Brasil pela Companhia das Letras em 2013 e 2015, respectivamente (as edições originais nos EUA são de 2010 e 2015).
Kaplan (1951-) também é co-autor de livros de memórias do ex-tenista John McEnroe e do comediante Jerry Lewis, além de uma bio do compositor Irving Berlin publicada no ano passado.
Já Elvis, o “Rei do Rock”, foi biografado pelo crítico musical americano Peter Guralnick em Último Trem para Memphis (1994) e Amor Descuidado (1999), finalmente publicados no Brasil pela Belas Letras em 2022 e 2023.
Guralnick (1943-) é um dos maiores estudiosos da história da música pop americana, com livros sobre blues, country, rock’n’roll e soul, além de biografias do bluesman Robert Johnson, do cantor soul Sam Cooke e de Sam Phillips, “descobridor de Elvis” e dono da gravadora independente Sun Records, de Memphis.
Em comum, essas bios em dois volumes são minuciosamente pesquisadas e bem escritas. E se dedicam a dissecar e tentar explicar para quem desafina até falando os talentos musicais ímpares que transformaram os dois cantores em mitos ainda em vida.
Essa atenção à música é muitas vezes deixada em segundo plano em outras biografias de Frank e Elvis, que se dedicam mais às partes conturbadas (ou, dependendo do tratamento dado no texto, escandalosas).
Aspectos como as ligações de Sinatra com mafiosos e seu temperamento explosivo. Ou as excentricidades e o progressivo vício em remédios legalizados de Presley (um coquetel de dezenas de pílulas que acabaria dando a pane fatal em seu corpo com apenas 42 anos).
Nem Kaplan nem Guralnick ignoram esses assuntos, mas tratam deles com sobriedade e sem passar a mão na cabeça dos biografados.
Sinatra por Kaplan
Frank: A Voz acompanha a “fase 1” do cantor, do início da vida e da carreira, passando pela “Frankmania” em 1942, quando era um ídolo romântico que causava histeria coletiva em adolescentes das adolescentes americanas – algo repetido anos depois pelas fãs de Elvis e dos Beatles.
Também passa pela bem sucedida (mesmo sem ser brilhante) carreira paralela de ator. E conclui com a decadência precoce na virada dos anos 1940 para os 1950, fracassado com os discos, perdendo a voz num show e jogado na sarjeta por Hollywood. Sem falar no casamento turbulento em crise permanente com a estrela Ava Gardner, que logo acabaria.
Essa primeira parte já é um bom livro, mas o melhor vem mesmo no seguinte. Sinatra: O Chefão pega a história em 1952, com o trapo ensaiando os primeiros passos para uma recuperação de fama e prestígio nunca vista antes no show business.
Frank estava tão por baixo naquela época que Irving “Swifty” Lazar, poderoso e influente agente de Hollywood, decretou: “Ele está morto. Nem Jesus ressuscitaria nesta cidade”.
Sinatra ressuscitou. No cinema, conseguiu a muito custo (com ou sem pressão da Máfia sobre um executivo do estúdio – depende do quanto você acredita que a historinha do filme O Poderoso Chefão é baseada nisso) um papel no drama de guerra A Um Passo da Eternidade (1953). Uma atuação surpreendente e intensa lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.
Musicalmente, conseguiu um lugarzinho na gravadora Capitol depois que a Columbia não quis mais seus serviços. Numa daquelas uniões que mudam completamente os rumos de uma vida, foi colocado para trabalhar com o maestro e arranjador Nelson Riddle, que abominava as baladas melosas do jovem Frank.
Riddle queria explorar um Frank mais maduro na voz e na vida após tantas surras nos anos anteriores. E preparar arranjos mais na linha big band de jazz, sem os violinos açucarados das baladas dos anos 1940 – quando havia violinos ou outras cordas, era mais para causar tensão e dar colorido.
Deu muito certo a partir do primeiro compacto (“I’ve Got the World on a String”, em 1953) e por muitos anos. Sinatra cantava como um adulto para adultos. E botou em prática, com um toque muito pessoal, tudo que absorveu de cantoras como Ella Fitzgerald e Billie Holiday.
O cantor também planejou com Riddle sequências de álbuns temáticos (um mais romântico seguido de outro mais dançante), possivelmente criando o que depois seria chamado de “álbum conceitual”.
Na segunda metade dos anos 1950 e o comecinho dos 1960, Sinatra era o artista mais poderoso dos Estados Unidos, talvez do mundo. Praticamente transformou a ainda vagarosa Las Vegas num lugar dos sonhos dos turistas graças a seus shows e suas farras com os amigos (especialmente Dean Martin e Sammy Davis Jr.) do grupo batizado de The Rat Pack.
Foi influente politicamente e se aproximou do então senador John Kennedy, a quem acabou ajudando a se eleger presidente em 1960 – e para quem também “apresentou” várias amigas, entre elas Marilyn Monroe.
A nova era do rock iniciada em 1964 por Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones mudou costumes e as regras do jogo na música. Sinatra pode ter se tornado antiquado naqueles tempos, mas nunca deixou de ser respeitado. E ainda era capaz de se destacar com um ótimo álbum de bossa nova/jazz em parceria com o brasileiro Tom Jobim em 1967, em plena explosão hippie.
Nas décadas finais, em que ele já era um monumento vivo que nem precisava fazer mais nada, o autor Kaplan ainda destaca a emoção que Sinatra sentiu em seu show no Maracanã em 1980. Ao ter um lapso de memória no meio de “Strangers in the Night”, o cantor ficou perplexo e feliz ao ver e ouvir a plateia brasileira prosseguir com a música cantando em inglês.
Elvis por Guralnick
Dos livros de Guralnick, Último Trem Para Memphis reconstitui a vida de Elvis até setembro de 1958, quando embarcou para servir ao exército dos EUA numa base na então Alemanha Ocidental por dois anos, logo após a traumática morte de sua querida mãe.
Esse período engloba os quatro anos em que ele se tornou o “Rei do Rock”, primeiro com compactos revolucionários em 1954-55 na pequena Sun Records, depois com sucessos mundiais pela grande gravadora RCA a partir de 1956. Além de quatro filmes bons de bilheteria e de qualidade decente, principalmente se comparados com as bombas que viriam nos anos 1960.

Mas é fascinante que o autor não se concentra apenas em Elvis. Ele apresenta um quadro muito rico do cenário musical do country branco e do blues e rhythm’n’blues negros nos anos 1940 e 1950, os estilos que Elvis (um rapaz sulista livre do racismo que imperava na região) somou e sintetizou de forma única em sua música.
Ou seja, Guralnick identifica cada ingrediente que fez Elvis ser Elvis.
Amor Descuidado retoma a narrativa de onde o primeiro volume parou e vai até a morte em 1977. Enfim, fica com a parte mais dramática e melancólica. Na carreira, a vida preguiçosa em Hollywood com um filme besta atrás de outro e trilhas sonoras terríveis. E a manipulação constante de seu mesquinho e misterioso empresário, o Coronel Tom Parker.
Na vida pessoal, a reclusão em mansões (a de Hollywood e a lendária Graceland, em Memphis), cercado de “parças” que faziam tudo que ele pedia, falavam tudo que ele queria ouvir e basicamente não tinham outra função na vida a não ser a de amigos do Rei.
Guralnick parece ficar feliz quando pode voltar a falar de bons trabalhos musicais de Elvis, como seu especial de TV para a NBC em 1968 e um álbum de alto nível em 1969 (From Elvis in Memphis) sem ligação com algum filme medíocre, além do hit “Suspicious Minds”. Também é vista com simpatia a primeira leva de shows da era do macacão de lantejoulas em Las Vegas, ainda com vigor.
Mas logo Elvis voltou a botar carreira e vida em piloto automático. Shows e discos, numa agenda extenuante e talvez desnecessária, pareciam todos iguais e com aquela chama adormecida. Até que ela adormeceu para sempre.
Este texto é uma versão revisada, atualizada e modificada do publicado em 2020 em meu antigo blog Século Pop. É um processo de preservar aquelas publicações neste espaço atual.
Marcelo, valeu pela dica da bio do Kaplan. Já foi pro wlist da amazon. Li os 2vols do Guralnick por indicação do ABarcinski. Realm/ são excepcionais e a qualid da escrita (que vc tanto preza) são marcantes. Para mim, o choque e o “turning point” da morte da Gladys Presley são o ponto alto. Abraço