Raul Seixas, 80
Como o LP Krig-ha, Bandolo! entrou na cabeça de uma criança de 6 anos para não sair mais
Raul Seixas (1945-1989) completaria 80 anos neste sábado, 28 de junho. Ele entrou na minha cabeça bem antes de ser apelidado de “Maluco Beleza”.
Foi em 1973, quando uma fita cassete BASF doméstica com Krig-ha, Bandolo!, gravada por alguém que tinha o disco, foi trazida para casa por meu pai.
O LP não durava bastante para preencher os 60 minutos da fita e havia outras coisas preenchendo o tempo restante do lado B. Não me lembro o que eram.
O que eu ouvia mesmo, dos 6 anos que eu tinha e pelo resto da infância até a fita desaparecer ou desgastar, era Raul e seu primeiro álbum solo.
Foi um universo novo que se abriu com aquele disco. Para uma criança de 6 anos, uma música de abertura como “Mosca na Sopa”, com direito a zumbidos e batucada de macumba, era diversão garantida. E, para este eu de hoje, ainda é.
O LP era muito diferente, longe do “eu te amo, tu me amas” típico da música popular comercial.
Eu sei que tinha mais gente no Brasil fazendo letras fora do clichê na época, mas Raul (junto com os Novos Baianos de Acabou Chorare) era algo inédito para o pequeno eu.
Raul me apresentou a palavra “metamorfose” e me fez consultar o dicionário com sua “Metamorfose Ambulante”.
Me fez sentir a euforia do rock'n'roll com a debochada “Al Capone”, que citava Frank Sinatra (1915-1998) pelo nome.
Me cativou com os coros quase gospel de “Vai cair… Vai subir” de “Dentadura Postiça”.
Me encantou com o country-rock de “As Minas do Rei Salomão" e com o clima ameaçador de “Rockixe”.
E me fez tentar aprender a cantarolar uma letra difícil e truncada como a de “Ouro de Tolo” – que eu adorava por causa do “Corcel 73”, do verso “dar pipoca aos macacos” e da autodescrição “ah, que sujeito chato sou eu (...) eu acho tudo isso um saco”.
Talvez hoje não se tenha ideia de como usar a palavra “saco” em sua acepção de “encher o saco” era deliciosamente transgressora em 1973; na mesma época, a música “Partido Alto”, parceria de Chico Buarque (1944-) e Caetano Veloso (1942-), ficou célebre pelo verso cuspido “porque eu já tô de saco cheio!"
A descoberta de um disco especial no passado longínquo marca muito. E, para mim, Krig-ha, Bandolo! ainda é o melhor álbum de Raul Seixas.
Por isso, atiçou minha curiosidade o e-book Como Raulzito Virou Raul Seixas: Tudo Sobre o Álbum Krig-ha, Bandolo!, publicado em 2023 pelo escritor e músico gaúcho Fúlvio Prado, fã assumido do cantor.
É um livro curto, estruturado em tópicos igualmente curtos – primeiro, com uma geral sobre a carreira de Raul antes de 1973, depois com um faixa a faixa de Krig-ha, Bandolo!.
Apesar da brevidade e de não ser uma obra de fôlego ou consistência, Fúlvio traz várias curiosidades interessantes sobre cada música. Como algumas das famosas “apropriações” que Raul adorava praticar.
A abertura de “Metamorfose Ambulante” tem um jeitão todo inspirado na cover de Joe Cocker (1944-2014) para “With a Little Help from My Friends”, dos Beatles. E “Rockixe” tem sua sinistra linha de contrabaixo inspirada pela de “We Gotta Get Out of This Place” da banda The Animals.
O autor também aponta que, na versão em compacto simples de “Ouro de Tolo” lançada dois meses antes do LP, Raul canta “Carrão 73” em vez de “Corcel 73”. O compacto é hoje uma raridade, digamos, raríssima.
Também é digna de elogios a inclusão de uma ficha técnica completa e comentada sobre quem participou da feitura do LP, que chegou às lojas em 21 de julho de 1973 e vendeu cerca de 500 mil cópias na época.
Enfim, Como Raulzito Virou Raul Seixas é um livro legal para quem curte curiosidades sobre uma obra ou um artista. E dá para ser lido numa sentada só.
PS 1: Apesar de tudo, aquela que talvez seja minha música favorita de Raul Seixas não está em Krig-ha, Bandolo!. É “Rock do Diabo”, do LP Novo Aeon, de 1975, com o riff de abertura chupado descaradamente (e maravilhosamente) de “Honey Don't”, do pioneiro do rock Carl Perkins (1932-1998).
PS 2: Já falei anteriormente de Raul Seixas em pop + livros + etc. Foi sobre a biografia Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida, escrita pelo jornalista Jotabê Medeiros.
Opa, vale lembrar que Raulzito já havia surrupiado a versão Joecockeriana de "With a Little Help From My Friends" antes ainda de ter gravado "Metamorfose ambulante" como Raul Seixas. Foi no refrão de "Tudo Acabado", faixa sua que entrou no primeiro dos dois LPs de Odair José na CBS.