A longa jornada de Raul Seixas até o sucesso
Biografia demonstra como roqueiro montou a carreira solo tijolinho por tijolinho
Pouquíssimos conseguiram uma união tão boa de rock e música brasileira quanto Raul Seixas (1945-1989). Mas coisas como o berro "Toca Raul!” em shows e a imagem de maluco beleza transformaram-no numa figura caricata, sem lhe conferir a importância merecida.
A biografia Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida, do jornalista e crítico Jotabê Medeiros, ajuda a reconhecer todo o talento de Raulzito.
O livro foi publicado em 2019. E o autor defende firmemente que a reputação de Raul foi prejudicada pelos folclores e por seu próprio comportamento errático e autodestrutivo, muito causado pelo alcoolismo que o levaria à morte por pancreatite aos 44 anos.
A obra cobre toda a vida de Raul. Começa, é claro, do garoto baiano de Salvador que adorava livros e era uma espécie de nerd antes de isso se tornar respeitável quando descobriu sua paixão pelo rock'n'roll.
Passa pela carreira de cantor do grupo Raulzito e Os Panteras, de produtor de discos da gravadora CBS, de astro de primeiro time da música brasileira com seus primeiros LPs nos anos 1970 e chega ao declínio dos anos 1980.
Mas a obra não acaba com a morte de Raul. O pós-vida inclui até a noite de 2013 em que o americano Bruce Springsteen abriu seu show em São Paulo cantando (em português!) "Sociedade Alternativa” como grande representante do repertório do rock brasileiro.
Foi como se Bruce tivesse "limpado” o nome de Raul com esse gesto. Alguém de fora teve de reconhecer o valor do artista para que outros brasileiros fossem alertados sobre o talento que vinham menosprezando.
Na introdução, Jotabê escreveu:
“Raul, para ser honesto, alternou em quantidade parelha vícios e virtudes, perversidade e generosidade, grandeza e pusilanimidade. Passar por cima de qualquer dessas características não o torna maior, e evidenciá-las também não macula sua obra, porque se trata de uma produção que escaneia aquilo que o Brasil tem de mais profundo e ao mesmo tempo mais evidente: sua criatividade mestiça, desregrada, mutável, inesperada".
O livro merece ser lido de orelha a orelha. Mas aqui vamos nos ater à longa jornada de Raulzito da juventude de roqueiro precoce da Bahia até desabrochar como artista solo em 1973 com o álbum Krig-Ha Bandolo! e o mega-hit “Ouro de Tolo”
Raulzito e Os Panteras
A trajetória musical de Raul Seixas começa com seu mergulho no rock'n'roll e, especialmente, Elvis Presley. Na sequência, seu envolvimento com uma cena rock de Salvador que o levaria a integrar a banda The Panthers (mais tarde, Os Panteras).
Além de fazer seus shows, The Panthers era frequentemente convidado para acompanhar artistas famosos que vinham do Sudeste – entre eles, ninguém menos que Roberto Carlos, já Rei da Jovem Guarda.
Outros nomes do "Sul maravilha” como Chico Anysio, Nara Leão e, principalmente, Jerry Adriani seriam decisivos para que Raul (ou Raulzito, na época) se firmasse na carreira artística no Rio de Janeiro, poucos anos depois.
Raul estreou em disco com o LP Raulzito e Os Panteras, gravado em 1967 e lançado em janeiro de 1968 pela Odeon (atual EMI). A melhor história sobre a obra vem da versão de Raul para “Lucy in the Sky with Diamonds", dos Beatles.
A canção psicodélica foi rebatizada como "Você Ainda Pode Sonhar". Em seu primeiro rascunho, Raul escreveu o verso de abertura “Pense em um dia com gosto de jaca” – que pode parecer absurdo, mas não está tão distante assim dos "marmalade skies” (céus de marmelada) que John Lennon colocou em outra parte da letra original…
O produtor Milton Miranda mandou Raulzito tirar aquilo e escrever outro verso. Houve muita argumentação do cantor em defesa do que criou. Finalmente, ele se rendeu e a música ficou com o verso de abertura "Pense num dia com gosto de infância".
(Talvez a jaca fosse mais psicodélica e mais de acordo com o que Lennon compôs…)
Há de se louvar que, ao longo do livro todo, Jotabê Medeiros se esmera em citar quem tocou, quem produziu, quem fez arranjos, quem ajudou nas letras e muitas vezes cita um minicurrículo de um ou outro músico ou personagem. É raro ver tanta atenção de tanta gente que ajuda a criar um disco.
O produtor
Os Panteras se desintegraram pouco depois do lançamento do disco. "Cada elemento do grupo foi desistindo devagar. O último fui eu", escreveu Raul, que chegou a voltar para Salvador, desencantado.
Mas Raulzito conseguiu voltar ao Rio de Janeiro graças a uma vaga como produtor na CBS (atual Sony Music).
Raul ficou encarregado das carreiras de artistas populares órfãos da Jovem Guarda e distantes de uma certa elite da música brasileira.
Além de seu padrinho Jerry Adriani, o baiano cuidou das produções de nomes como a dupla Leno e Lilian e o grupo Renato e Seus Blue Caps, além das revelações Márcio Greyck, Diana e Odair José. Naquele tempo, eram nomes vistos como "cafonas”.
É de Raul Seixas a autoria do maior sucesso de Jerry Adriani, "Doce Doce Amor". Anos depois, ele deu uma noção do quanto aprendeu nessa época – e viria a utilizar bastante em sua própria carreira solo:
“Como os Beatles, que aprenderam no estúdio, eu aprendi tudo na CBS, os macetes todos. Aprendi a fazer música fácil, comercial, intuitiva, que levava direitinho o que a gente quer dizer. Aí desisti de vez do livro que eu ia fazer, o tratado de metafísica. Decidi chegar ao livro através dos discos, dos sulcos, das rádios. É mais positivo, é melhor”.
(...)
“Ninguém tentou, ainda, transmitir ideias novas, de vanguarda, através de uma música que mantivesse o seu caráter popular. Descobri que poderia fazê-lo ao ver o país inteiro cantando ‘Doce Doce Amor’, do repertório do Jerry. Então me veio à cabeça aquele negócio lógico. Se eu tivesse escrito uma música chamada ‘Amargo Amargo Amor’, ela teria sido cantada da mesma maneira.”
Kavernistas
Mesmo podendo se considerar um produtor bem-sucedido, Raul não desistiu por um único momento de seu sonho de ser cantor solo. Testou as águas primeiro com um maluco álbum coletivo, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, lançado pela CBS em 1971.
Seus parceiros no coletivo Kavernista eram os "malditos” Sérgio Sampaio, Edy Star e Miriam Batucada. Relativamente experimental, não era um disco para fazer sucesso – e não fez, apesar da vontade de Raul.
Segundo o livro, chegou aos executivos da CBS brasileira um telegrama sobre o disco enviado por um chefão da matriz americana: "What is this?” (com o sentido de “Que porra é essa?").
Jotabê estima no livro que dizia-se que apenas mil cópias do LP foram prensadas pela CBS.
Mas, como cita o autor, mereceu uma crítica elogiosa e inusitada escrita pelo cartunista Henfil:
“Disco piradão! Músicas cafonistas! No início de cada faixa tem uma gracinha e no fim um ruído horripilante de legorne [legorne é um tipo de galinha poedeira]! É genial! Parece gravação que a gente faz em casa, todo mundo se despingolando na frente do gravador… Aí, no fim, o disco se suicida com um formidável som de descarga! Juro!”
Rock-baião ou Baioque
Em 1972, Raul finalmente fez sua estreia solo no VII Festival Internacional da Canção, da Rede Globo – por sinal, a última edição deste festival.
Com jaqueta e calça de couro e topete com brilhantina, como um Elvis brasileiro vindo dos anos 1950, Raul cantou seu rock-baião (ou baioque) "Let Me Sing, Let Me Sing". Não chegou nem perto de ganhar o festival, mas atraiu bastante atenção.
O livro recupera uma declaração da época à revista Fatos & Fotos do músico César Camargo Mariano, então marido, pianista e arranjador da cantora Elis Regina:
“Fiquei realmente impressionado com o ‘Let Me Sing, Let Me Sing’, não só pela beleza e melodia, mas também pelo arrojo do compositor. A música vai do rock‘n’roll ao baião com sotaque da Bahia, eletriza e arrepia do princípio ao fim. A letra é original e vigorosa, uma beleza de criação.”
Para a gravação do compacto com a música, conseguiu os serviços de Jackson do Pandeiro, mito da música nordestina.
Melhor no festival foi seu colega Sérgio Sampaio, que se tornou o fenômeno de sucesso de 1972 com a música “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua". O disco lançado em seguida vendeu rapidamente 100 mil cópias – o de Raul, 10 mil.
O desempenho no festival ajudou Raul a conseguir um contrato de cantor com a Phonogram (depois PolyGram, hoje Universal) através de um pioneiro da bossa nova, Roberto Menescal.
Raul gravaria pelo selo Philips, o principal da companhia, que já tinha grandes nomes da MPB como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben, Gal Costa e Elis Regina.
O Coelho
Ainda naquele 1972, Raul foi à redação da revista independente 2001, de textos alternativos supostamente filosóficos, procurando o jornalista Augusto Figueiredo. Queria ver se emplacava alguns artigos na publicação.
O procurado não estava e Raul foi atendido por outro jornalista, um certo Paulo Coelho – que, na verdade, era o próprio Augusto, um pseudônimo que ele usava na revista.
Raul decidiu esperar pelo “Augusto” que jamais chegaria (ou melhor, já estava ali diante dele). Após algum tempo, ao ver que o baiano não iria embora, Coelho decidiu confessar sua identidade.
Raul mostrou o artigo sobre astronomia que queria emplacar na revista. Coelho gostou do que leu e se empolgou ainda mais ao saber que o visitante era produtor musical.
Ali começou uma amizade e, por insistência de Raul, uma parceria de letra e música que durou poucos anos, mas teve muito impacto.
Enquanto isso, na Phonogram, o jornalista e produtor Nelson Motta teve a ideia de fazer um álbum com Raul cantando clássicos do rock desde os anos 1950. Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock pelo selo Polyfar. A gravadora creditou o trabalho a uma banda fictícia, Rock Generation. Na prática, era o primeiro álbum solo de Seixas.
Quando Raul virou artista de sucesso, a Phonogram cinicamente relançou em 1975 o LP com o nome dele pelo prestigiado selo Philips.
Ficava cada vez mais claro que estava na hora de Raul lançar um LP com seu trabalho próprio. Ele novamente se destacou no festival não-competitivo Phono 73, organizado pela Phonogram.
Raul pintou no peito a chave que era o símbolo de sua nova invenção, a Sociedade Alternativa, e cantou a inédita "Loteria da Babilônia", parceria com Paulo Coelho.
A participação de Raul foi criticada pelo jornalista José Nêumanne Pinto na Folha de S. Paulo, em que ele acusa Raul de querer enterrar seu passado como produtor de "música cafona” se apresentando como um imitador de Bob Dylan.
Raul respondeu à altura no mesmo jornal: “Em momento algum eu neguei as músicas que fiz para Jerry Adriani e Renato [e Seus Blue Caps]. Pelo contrário, sem aquele tipo de vivência talvez não tivesse hoje a maleabilidade musical que me é tão necessária para falar com as mais variadas espécies de público”.
Obra-prima de estreia
Finalmente, o álbum de “estreia” de Raul ficou pronto. Foi batizado de Krig-Ha, Bandolo!, um grito de guerra do personagem das selvas Tarzan tirado de uma história em quadrinhos que Paulo Coelho lia quando ele e o parceiro buscavam um nome para o LP.
Uma obra-prima de rock brasileiro. Uma obra-prima de música popular brasileira. Tinha o rock afro-baiano da faixa de abertura "Mosca na Sopa". O rock folk de "Dentadura Postiça". O rock rebelde-ameaçador “Rockixe". O rock rock de “Al Capone". O rock hino de "Metamorfose Ambulante".
E, na faixa de encerramento, o rock contestador “Ouro de Tolo". Para o autor Jotabê, “uma das maiores canções da história da música brasileira. (...) Raul destilava sarcasmo contra as ambições burguesas, a busca incessante da segurança e do conforto social. (...) Um estilo discursivo urbanoide, quase falado, uma espécie de fusão entre a tradição do folk dylanesco e o repente brasileiro”.
Com Krig-Ha, Bandolo! e “Ouro de Tolo”, Raul Seixas foi um dos maiores fenômenos de sucesso e vendas de 1973, junto ao trio Secos & Molhados de Ney Matogrosso, também de inspiração roqueira.
Nascia um ídolo nacional. Imperfeito, autodestrutivo, inconstante, místico, roqueiro de raiz, maluco beleza. Mas um ídolo nacional duradouro.
O Henfil falando sobre o "álbum kavernista" me lembra o Tarantino elogiando "Coringa: Delírio a Dois". Ironias à parte, belo texto, Marcelo. Parabéns!
Valeu Marcelo. Excelente texto homenageando nosso ídolo! Valeu mais uma vez.