Cara a cara com o R.E.M.
Papos com Michael Stipe e Mike Mills na época em que a banda virou trio
Gosto muito do R.E.M. desde que ouvi “Wolves, Lower” em 1984 ou 1985 – não me lembro com certeza – numa das rádios alternativas paulistas (havia a 89 FM paulistana e a 97 FM em Santo André; a Brasil 2000 viria um pouco depois).
A faixa era do EP Chronic Town, lançado pelo quarteto alternativo de Athens, Georgia (EUA), em agosto de 1982. Portanto, havia uns poucos anos de atraso.
Mas, naquele tempo, acho que a gente nem se importava se uma música era do mais novo pacote de bolacha ou se era de um mais antigo. O som é que era importante.
Creio que, na sequência, conheci também “So. Central Rain (I'm Sorry)” nas mesmas circunstâncias. Esta já era mais recente, saída de Reckoning, segundo álbum da banda, lançado em abril de 1984. E foi com esta música que me apaixonei pelo R.E.M..
Vale lembrar que nem Chronic Town nem Reckoning (tampouco o álbum de estreia Murmur, de 1983) tinham sido lançados no Brasil.
Na época, disco importado era muito, mas muito mais caro que os lançamentos nacionais.
Então era preciso um bom dinheiro e muita certeza do que se estava fazendo (ou seja, se disco e banda eram bons mesmo) para ir a uma loja encomendar ou ter a sorte de encontrar um LP na prateleira de importados.
Por isso, só fui começar a ter R.E.M. em casa quando vieram os primeiros lançamentos no Brasil entre 1985 e 1987. E ainda comprei de prateleiras de usados (a economia brasileira dos anos 1980 não era moleza)...
Não me lembro em que ordem comprei Fables of the Reconstruction (1985), Lifes Rich Pageant (1986) e a coletânea de B-sides e sobras de estúdio Dead Letter Office (1987). Três álbuns maravilhosos.
Ainda em 1987, veio o primeiro LP do R.E.M. que comprei zero quilômetro: o espetacular Document, que tinha “The One I Love” e “It's the End of the World As We Know It (And I Feel Fine)”, dois clássicos instantâneos.
Nos anos 1990, a qualidade só aumentou e Automatic for the People (1992) ainda é um dos meus álbuns de estimação.
Tudo ia bem até que o baterista Bill Berry (1958-) desmaiou durante um show na Suíça em 1995 graças a um aneurisma cerebral que se rompeu.
Felizmente, ele sobreviveu, mas pediu para deixar a banda porque não aguentava mais o ritmo de gravações e turnês. Cuidar da saúde era a prioridade.
A saída de Berry criou uma incógnita quanto ao futuro do R.E.M.. A banda continuaria? Afinal, os quatro integrantes teriam um suposto pacto de que se alguém saísse seria o fim.
A resposta demorou uns três anos. Em 1998, o agora trio lançou seu primeiro álbum com a nova formação, Up.
Para o lançamento do álbum, fui escalado pela Folha de S. Paulo para viajar a Miami (EUA) onde ouviria o novo CD com umas duas semanas de antecipação e teria entrevistas exclusivas com dois membros do R.E.M., o vocalista Michael Stipe (1960-) e o baixista Mike Mills (1958-).
Pena que o guitarrista Peter Buck (1956-), meu integrante favorito, não tenha entrado nessas sessões de conversa.
Mas eu não tinha do que reclamar. Era um fã de quase primeira hora (talvez segunda ou terceira hora, mas…) e teria acesso a eles num momento-chave na história da banda.
Up era um álbum quase experimental, com muito uso de bateria eletrônica para compensar a ausência de Berry. Agradável aos ouvidos e com alguns momentos brilhantes, o CD não fez sucesso quando foi lançado.
Fiz as entrevistas separadamente com os dois artistas num quarto do hotel em que eles estavam hospedados.
Lembro que Mike Mills era mais despachado, um “cara da galera”– passou até uma cantada na assessora brasileira da gravadora Warner que me ciceroneou na viagem. E falou mais na entrevista.
Já Michael Stipe foi enigmático, reservado, defensivo até. Passou a entrevista quase toda olhando para algum ponto fixo na janela que ficava de frente para ele (e de costas para mim).
Como ele foi mais lacônico, a entrevista rendeu menos que a do colega de banda. Mesmo assim, foi proveitosa.
Na matéria principal da página inteira dedicada ao R.E.M., saiu a entrevista em formato de pingue-pongue (pergunta-resposta). Algumas perguntas foram feitas tanto para um como para o outro.
Reproduzo aqui a entrevista conforme foi publicada na Folha em 10 de outubro de 1998. Os parênteses são da matéria original, já os colchetes são para uma observação de agora.
Vocês sentem que esse é o "R.E.M. parte 2"?
Michael Stipe - Talvez para alguém, mas, na verdade, não. É apenas muito, muito diferente agora. Ainda somos uma banda. Não é o "R.E.M. parte 2", mas uma continuação. Senti-me desafiado nesse disco a fazer um trabalho que eu sentia dentro de mim com o mesmo calibre e qualidade.
Mike Mills - Acho que é válido. Tivemos tantas coisas acontecendo nos últimos dois anos. Ainda é R.E.M. no nome, mas o R.E.M. a partir de agora é diferente.
Como foi a primeira sessão de gravação sem Bill Berry? E o primeiro show sem ele (Tibetan Freedom Concert, em junho de 1998, em Washington)?
Stipe - O show foi bom. Mas foi muito estranho no estúdio. Tentamos encontrar novas maneiras de fazer o que fizemos por 17 anos. Trouxe um estado de caos, dentro do qual não havia regras. Tínhamos músicas sem bateria nem guitarras. O que poderia ser um disco experimental virou realmente experimental.
Mills - Foi estranho. Fomos como uma família por 17, 18 anos, então faltava algo. Houve vezes em que eu virava para o lado para falar com Bill, e ele não estava lá. Mas felizmente ele não está morto, apenas deixou a banda.
Berry ouviu o disco novo?
Mills - Ouviu e chorou um pouquinho. Disse que era lindo.
É fato ou mito que, quando a banda começou, vocês fizeram um pacto de que no dia em que alguém quisesse sair a banda acabaria?
Mills - Não era um acordo jurado. Acho que não queríamos uma porta giratória, com esse saindo, outro entrando e saindo... R.E.M. era aqueles quatro caras e ponto. Achávamos que, se um quisesse sair, teríamos de acabar. Mas tínhamos uns 20 anos, e o que você sabe aos 20? Quando Bill disse que ia sair, falou: “Não vou sair se a banda acabar. Se for assim, eu fico”. Foi ótimo porque não queríamos acabar. Estávamos entrando no estúdio, tínhamos todas as músicas compostas. Ele falou no primeiro dia de ensaio porque foi a primeira chance que teve de encontrar Peter e Michael em algum tempo.
Há tristeza e também uma espécie de otimismo nas letras. Algo relacionado à saída de Berry da banda?
Stipe - Acho que tristeza e otimismo são gêmeos do mal em minha personalidade. Sempre estiveram presentes no R.E.M.. A saída dele não afetou imediata ou automaticamente as letras.
Vocês vão fazer shows ou turnês?
Stipe - Vamos promover o disco e ver o que acontece.
Mills - Estamos deixando 1999 em aberto. Queremos voltar a fazer turnês, mas não vamos fazer agora porque poderia acabar com a banda de vez. Vamos primeiro descobrir que banda somos agora e gravar mais um disco no ano que vem ou em 2000.
Algum plano de shows no Brasil no futuro? [O R.E.M. só viria tocar pela primeira vez no país no Rock in Rio em janeiro de 2001]
Stipe - Estive duas vezes em São Paulo em paradas rápidas vindo de um lugar e indo para outro. Adoraria ir ao Brasil. Nosso problema é que decidimos que não queremos patrocínio, e é difícil para uma banda grande tocar em qualquer lugar na América do Sul sem ter cigarros Hollywood ou outro patrocínio por trás. É algo que andei falando com o U2 (que tocou no Brasil no começo de 1998).
Em uma sub-matéria na mesma página, Mike Mills deu mais detalhes das gravações de Up. Primeiro, ele disse: “Gravamos com equipamento dos anos 70 usando a tecnologia dos anos 90”.
Ele garantiu que o disco teria essa tendência eletrônica mesmo que Bill Berry tivesse continuado na banda.
“Já estávamos experimentando com baterias eletrônicas. Bill estava entediado com a bateria”, contou Mills.
Sobre o uso de equipamentos antiquados, Mills falou: “Peter (Buck) coleciona velhos teclados e baterias eletrônicas. São análogos, por isso têm um calor, não são como as (digitais) que apareceram nos anos 80, perfeitas. As que usamos fazem barulhos estranhos, não mantêm o compasso”.
Mills disse que Michael Stipe concluiu suas letras e gravou seus vocais somente depois de todos os instrumentais estarem gravados. E ninguém meteu o bedelho nas letras.
Segundo Mills, só há um debate quando Stipe canta algo político ou muito esquisito:
“Ele trabalha muito, reescreve e é seu pior crítico. Não é necessário mexer com um dos melhores nesse campo”.
P.S.: Há duas boas biografias do R.E.M.. A mais recente é The Name of This Band Is R.E.M.: A Biography, publicada nos EUA em novembro de 2024. O autor é o jornalista americano Peter Ames Carlin, que já escreveu livros sobre Brian Wilson e os Beach Boys, Paul McCartney, Paul Simon e a fase áurea da gravadora Warner Bros. Records.
Em agosto, Carlin publicará Tonight in Jungleland: The Making of Born to Run, sobre como foi feito o álbum Born to Run (1975), que transformou Bruce Springsteen em astro do rock.
Outra obra de fôlego sobre o R.E.M. é Perfect Circle: The Story of R.E.M., do jornalista inglês Tony Fletcher. Ele já escreveu livros sobre o baterista Keith Moon, do The Who, The Smiths, The Clash e o cantor de soul Wilson Pickett.
Perfect Circle teve uma encarnação anterior com o título Remarks: The Story of R.E.M., originalmente publicada em 1989 e que teve atualizações pontuais – tenho um exemplar de meados dos anos 1990.
A edição mais recente de Perfect Circle é de 2019. A banda encerrou suas atividades em 2011.