A torta autobiografia de Charles Mingus
Mestre criativo do jazz assumiu suas contradições em seu livro de memórias
Saindo da sarjeta: A Autobiografia de Charles Mingus (Beneath the Underdog, 1971) teve sua primeira edição brasileira em 2005, através da editora Jorge Zahar. Traz as tortas memórias do contrabaixista, pianista e compositor Charles Mingus (1922-1979), um dos mais brilhantes criadores da história do jazz.
Está longe de ser uma biografia previsível. Afinal, Mingus era completamente fora do previsível.
Contradições foram comuns para Mingus durante a vida e para a posteridade. Era gigante no talento e no tamanho de seu corpo, e também genial e genioso, sensível e sempre disposto a uma briga.
Ele mesmo admitia isso, ressaltando que seus conflitos não eram entre uma e outra opção, mas havia uma terceira personalidade que apenas ficava no meio esperando o que a talentosa gentil e a temperamental invocada iriam aprontar.
Aí sim ele se manifestava em cima dos resultados. Essa autodefinição de Mingus consta de Saindo da Sarjeta.
A edição brasileira foi a primeira tradução publicada aqui, mas não a primeira em português. Razoavelmente fácil de encontrar nos anos 1980 em São Paulo era a versão da editora portuguesa Assírio & Alvim com o título Abaixo de Cão.
Havia alguns inconvenientes nessa edição. Como a utilização das palavras à moda lusitana e uma certa falta de familiaridade com o mundo jazzista.
Em 2005, entrevistei por telefone para a revista Cult o tradutor brasileiro Roberto Muggiati (1937-), jornalista e jazzófilo desde a entrada na adolescência. Ele comentou sobre os problemas do livro luso.
Mas nem mesmo a intimidade com a terminologia do jazz tornou a tarefa mais fácil para Muggiati, conforme ele descreveu.
“Vejo tradução como uma aproximação do original. Nesta, procurei ser fiel a certos termos. Por exemplo, Mingus se dirigia muito aos outros usando ‘baby’. Falei com a editora para manter o ‘baby’ para não cair num ridículo como o daquele velho seriado Kojak, em que aqui no Brasil ouvíamos um policial falando ‘neném’, sendo que ele não usava o ‘baby’ com esse sentido. Também tive um desafio numa passagem no final do livro em que ele fez uma prosopopéia – estava mais para um jazz do Finnegan’s Wake (obra do escritor irlandês James Joyce) que um jazz de Mingus. Procurei traduzir aproximadamente, pela sonoridade”, contou Muggiati.
O tradutor ressaltou que Saindo da Sarjeta foi uma das poucas oportunidades em que um grande artista de jazz contou sua história.
O livro está lado a lado com empreitadas semelhantes da cantora Billie Holiday (1915-1959), cujo Lady Sings the Blues também foi traduzido por Roberto para a Jorge Zahar, do saxofonista Art Pepper (1925-1982) e dos trompetistas Chet Baker (1929-1988) e Miles Davis (1926-1991).
Uma diferença é que essas outras foram construídas em cima de depoimentos transcritos e editados por um redator/co-autor (ou, no caso de Baker, apenas alguns manuscritos aleatórios e incompletos).
Já Mingus tinha o dom de se expressar muito bem escrevendo e elaborou seu livro com imagens até ousadas e não lineares, às vezes falando de si mesmo como se fosse outra pessoa, referindo-se ao “meu garoto Mingus”.
“Ele escrevia para revistas e era articulado. Mas, na época da autobiografia, estava fazendo análise e procurou um distanciamento, talvez porque fosse uma pessoa muito emocional. Mesmo assim, do total que ele escreveu, cerca de um terço ficou de fora da edição final”, relembrou Muggiati.
O tradutor apreciador de jazz também apontou que o Saindo da Sarjeta está longe de ser uma obra definitiva.
Ele disse: “Embora seja uma referência muito boa e importante, principalmente quanto à condição do músico de jazz na época em que ele viveu, para informação mais completa sobre Mingus uma biografia será um bom complemento. Em seu livro, ele não fala muito de música, faz mais crítica social”.
Como já havia feito em sua tradução do livro de Billie Holiday, Muggiati acrescentou um apêndice explicativo que orienta o leitor sobre a obra do artista: o capítulo “Viagem ao mundo de Mingus em 20 álbuns”, que destaca e comenta seus principais discos.
Inventivo e engajado
Sem a trajetória musical de Mingus, Saindo da Sarjeta não teria a importância que alcançou.
Nascido em Nogales, Arizona (EUA), ele se aprimorou em composição ao piano e como músico no contrabaixo, um instrumento que oferecia irrisórias chances de destaque ou estrelato.
Nos anos 1940, Mingus trabalhava com mitos como Louis Armstrong (1901-1971) e Lionel Hampton (1908-2002). Nos anos seguintes, aumentou seu currículo acompanhando Charlie Parker (1920-1955), Miles Davis e Duke Ellington (1899-1974). E firmou-se como bandleader.
Na última metade dos anos 1950, desabrochou como artista criativo, liderando bandas e compondo seu repertório. Como aponta Muggiati, uma mesma música tinha vários andamentos diferentes e Mingus buscava atingir com septetos ou octetos a mesma intensidade sonora de uma big band.
Ele também sabia explorar e dar novo ímpeto a formas tradicionais negras como o blues e o gospel, e nunca desprezava o ritmo pulsante.
Também procurava compor sem botar seus instrumentistas numa camisa-de-força de partituras e estimulava o improviso sobre as bases-padrão.
Sua melhor fase começou em 1959 com os álbuns Mingus Ah Um e Mingus Dynasty e avançou até meados dos anos 1960.
Essa fase inclui o agitado álbum feito em trio com Duke Ellington ao piano e Max Roach (1924-2007) na bateria, Money Jungle (1962); regravações de suas principais composições em Mingus Mingus Mingus Mingus Mingus (1963); o trabalho solo introspectivo Mingus Plays Piano (1964); e colaborações com o saxofonista de free-jazz Eric Dolphy (1928-1964) pouco antes de sua morte precoce.
Além dos talentos musicais, Mingus era um dos jazzistas mais engajados pelos direitos dos afro-americanos, indignado com a exploração de empresários brancos e gravadoras, tanto que abraçou a causa do movimento contra a segregação na década de 1960.
Sempre incisivo, sem meias palavras e até cabeça quente (arrumava encrencas tanto com seus antagonistas como com seus colegas), ele não colaborou em nada para que fosse endossado pelo establishment como um “mito do jazz” dócil que “conhece seu lugar”. Até viveu dificuldades como uma ameaça de despejo em Nova York.
Na década de 1970, Mingus retomou uma sequência de trabalhos mais freqüente – como nos álbuns gêmeos Changes One e Changes Two (1974), e na união a guitarras elétricas em Three or Four Shades of Blues (1977).
Mas Mingus acabou freado por uma esclerose rara que o colocaria numa cadeira de rodas e, depois, o levaria à morte em 5 de janeiro de 1979, em seu retiro no México.
Apesar da identidade instantânea e inconfundível, sua inventividade bem pessoal influenciou gerações seguintes no jazz – como no caso da disposição organizacional do trompetista Wynton Marsalis (1961-), como apontou Muggiati – e fora dele.
PS 1: Este texto é uma versão revisada, reescrita e atualizada do original (e não da versão publicada) que escrevi no final de 2005 para a revista Cult.
PS 2: Já falei aqui antes do livro Rock: O Grito e o Mito, de Roberto Muggiati.
Aproveitando o tema: tu tem alguma indicação de livro de jazz que seja mais geralzão? Algo sobre a história geral ou de um período específico. Eu queria algo assim antes de mergulhar nas biografias dos artistas do gênero.