2 bate-papos com Sócrates
Entrevistas com o Doutor do futebol que o jornalismo me proporcionou
Entre as satisfações que o jornalismo me trouxe, as conversas que pude ter com o craque Sócrates (1954-2011) estão entre as maiores. Pude falar com ele nos meus tempos do jornal Notícias Populares, da breve Revista 10 e da revista VIP, além de um free-lance para a Placar.
Os mais longos e consistentes desses papos foram para a Placar e para a VIP – esta última apenas um ano e meio antes da morte de Sócrates. São elas que terão destaque aqui.
Doutor Sócrates (sim, ele tinha muito direito ao apelido, já que era formado em medicina) foi um jogador de futebol único.
Um talento de alto nível internacional que se tornou um símbolo politizado de esquerda, respeitado internacionalmente até hoje. Foi o líder de um movimento de liberdade dentro de um elenco de futebol, a Democracia Corintiana (1982-1984).
O meia ofensivo encantou primeiro o público brasileiro por Botafogo de Ribeirão Preto e Corinthians.
Depois encantou o mundo pela Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982 e até na de 1986 (apesar do pênalti perdido na eliminação diante da França, nas quartas-de-final).
Por Fiorentina da Itália, Flamengo e Santos, não houve encanto. Sócrates entrou cedo em decadência. Aposentado da bola, manteve-se em evidência como um intelectual do futebol.
Algo no qual Sócrates não era único foi o alcoolismo. Mesma desgraça que deu cabo das vidas de gênios como o nosso Garrincha e o norte-irlandês George Best, além de dezenas ou centenas de outros jogadores comuns.
Sócrates sempre bebeu cerveja aos montes na vida adulta. Quando jogava, qualquer efeito não transparecia. Quando começou a decair em campo e, principalmente, depois de aposentado, a doença o dominou e causou sua morte com apenas 57 anos, em 4 de dezembro de 2011.
Duas biografias dão muito mais detalhes sobre a vida e a carreira do Magrão. A melhor é Doutor Sócrates, do jornalista escocês Andrew Downie, que foi lançada primeiro no Reino Unido em 2017 antes de ser publicada aqui pela Editora Grande Área.
Outra é Sócrates- A História e as Histórias do Jogador Mais Original do Futebol Brasileiro, do jornalista brasileiro Tom Cardoso, publicada em 2014.
Deste, gosto muito do primeiro capítulo, que conta a saga de Sócrates conduzido numa Variant (e bebendo cerveja no caminho) numa viagem em tempo recorde de Ribeirão Preto até o estádio do Pacaembu, em São Paulo, para defender o Botafogo paulista contra o Corinthians em 29 de maio de 1975.
Este foi nada menos que o primeiro jogo de futebol que assisti num estádio. Sócrates chegou em cima da hora, botou o uniforme já no túnel e fez um gol. Mas o Corinthians ganhou por 4 a 1.
Passemos para as entrevistas.
Placar, 2005
Entrevistei Sócrates por telefone para uma edição especial da revista Placar, da Editora Abril, sobre o confronto Brasil x Argentina publicada em junho de 2005.
As duas equipes iriam se enfrentar pelas Eliminatórias da Copa de 2006 e poderiam se cruzar na Copa das Confederações na Alemanha (realmente se cruzaram na final, com o Brasil vencendo por 4 a 1).
Sócrates fez três partidas memoráveis contra a Argentina em sua carreira. Em 1979, pela Copa América, fez os dois gols do Brasil num empate de 2 a 2 em Buenos Aires. Foi a primeira viagem internacional dele.
Em 1981, comandou o time desfalcado de Zico num empate valente contra a Argentina de Maradona pelo Mundialito no Uruguai. E, em 1982, desfilou com toda a Seleção numa maiúscula vitória de 3 a 1 em Barcelona, pela Copa do Mundo.
Eis os principais trechos da entrevista:
Qual é o seu Brasil x Argentina inesquecível, entre os que você disputou?
Todos. Todo jogo contra a Argentina é sempre uma guerra. Mas, realmente, alguns foram diferentes, como o meu primeiro jogo fora do Brasil em 79 e o da Copa do Mundo de 82.
Esse de 79 não foi apenas meu primeiro jogo no exterior. Eu nunca tinha saído do Brasil para qualquer coisa. Um jogo tumultuado, o Zico foi expulso, tive que cobrar um pênalti duas vezes... Eu fiz os dois gols: esse de pênalti e um de cabeça.
Foi importante porque eu estava havia poucos meses na seleção, começando a ter meu lugar. Mesmo assim, eu não manifestei muita emoção porque, naquela época, eu tentava esconder meus sentimentos.
Quanto a 82, a importância é que foi a única vez que enfrentei a Argentina em Copa do Mundo. Mas não vejo nada de particular quanto à partida.
Foi até um jogo mais tranquilo do que nós mesmos esperávamos, afinal a Argentina ainda era a campeã do mundo quando nos enfrentamos.
Mas, como eu disse, cada jogo era uma guerra. Provocação, sempre. O jogador argentino – o uruguaio também – não vive sem isso. Sem jogar de forma agressiva. Caiu na frente deles, eles pisam mesmo.
Em qualquer discussão sobre Brasil e Argentina, é meio inevitável falar de Pelé e Maradona. Como você vê esses dois craques e o papel deles para seus países e para o futebol mundial?
Como jogadores, os dois eram excepcionais. Com a diferença que o Pelé também era mais bem dotado fisicamente que todos os outros jogadores de futebol. A soma de talento excepcional e a capacidade física fizeram toda a diferença em favor dele. Maradona, Zico e outros grandes jogadores tinham o talento, mas lhes faltava a mesma capacidade física.
Pelé e Maradona se destacaram muito numa atividade popular. Viraram referências da arte de jogar futebol e se tornaram símbolos não só em seus países, como para todo o planeta.
Tirando Pelé e Maradona, qual foi o melhor jogador brasileiro e o melhor argentino que você viu jogar?
Do Brasil, eu vou citar um que vi pouco, mas o que vi já basta: Garrincha. E, da minha geração, o Zico.
Da Argentina... (pausa) Olha, eu não colocaria ninguém. Vi e enfrentei vários grandes jogadores, mas observei menos porque eles estavam longe daqui. E também estão longe, muito longe do Maradona, que é uma exceção. Então, prefiro não citar nenhum deles, até para não cometer injustiças.
Uma noção geral é a de que a Argentina tem mais sucesso internacional com seus clubes, enquanto o Brasil tem mais sucesso com a seleção. Você concorda? E por que isso ocorreria?
Até foi, mas porque o Brasil nunca deu valor à Libertadores até uns dez anos atrás, quando o São Paulo começou a ganhar. O que se valorizava aqui era campeonato regional. Mesmo o Brasileiro não era tão valorizado.
Então, a Argentina ganhou muitas Libertadores. Porém, acho que nos anos 90 passou a haver um equilíbrio nesse aspecto, os times brasileiros passaram a dar mais atenção.
Outra noção geral: a de que o jogador brasileiro tem mais técnica e o argentino, mais garra. Qual sua opinião sobre isso?
São diferenças culturais do futebol de cada país. Mas uma característica argentina é que eles são muito agressivos, partem para a disputa com vontade, usam muito o físico. Já o brasileiro é mais artista como jogador de futebol.
VIP, 2010
Para a edição de junho de 2010 da revista VIP (na qual fui um dos editores por 12 anos), da Editora Abril, entrevistei Sócrates pessoalmente numa cantina no bairro paulistano da Pompeia. Estava comigo Rodolfo Viana, meu colega na revista e co-autor da entrevista.
A conversa foi numa noite fria de abril. O mote era a Copa do Mundo de 2010 que começaria em junho na África do Sul.
O técnico da Seleção na época era Dunga. O mesmo que, como capitão do time, levantou a Taça Fifa no tetra na Copa de 1994.
Quem começou aquela Copa de 1994 como capitão foi Raí, irmão mais novo de Sócrates. Mas Raí foi para a reserva nas oitavas-de-final e passou a braçadeira para Dunga.
A primeira pergunta é uma espécie de provocação em cima desse fato. Esta é uma versão bruta da entrevista, diferente da editada e publicada na VIP.
Se o seu irmão Raí tivesse sido convocado e levantado a taça [em 1994], ele seria o técnico hoje, em vez do Dunga?
Poderia ser, né? Aliás, é inexplicável. Não pelo aspecto simplório do futebol, mas pelo que se espera de um capitão de time. Se você é escolhido capitão é porque tem uma representatividade perante o time. Não porque você joga melhor ou porque é o que grita mais, mas porque representa a equipe. Você abrir mão desse cara é abrir mão de tudo o que você construiu até ali. É incompreensível.
Mas aconteceu alguma coisa naquela época?
Ele nunca me falou nada. O Raí é muito discreto, guarda tudo... O que eu posso falar sobre isso é por especulação do sentimento dele. Acho que ele é o mais indicado para falar sobre o assunto. Mas acho que ele sofreu.
O que o Dunga representa para o futebol brasileiro e sua filosofia?
A gente não pode falar em contracultura. Acho que é anticultura mesmo. O brasileiro vem de muitas culturas, e minha visão de brasileiro é aquela de Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre: espírito criativo, independente. Essa coisa de guerreiro... Nós não temos isso no sangue. Isso não é brasileiro.
E futebol não é guerra.
Não é guerra. É espetáculo.
Hoje em dia temos jogadores preocupados com outras questões além do futebol, como a estética. No seu tempo os atletas eram mais rústicos. O que houve?
Futebol é uma arte. É espetáculo. Normalmente se espera que as pessoas se apresentem e sejam aplaudidas pela sua arte. Quando deixa de ter arte, outros elementos entram em pauta. Inclusive a estética. O futebol ficou mais feio, mais bruto.
Minha sugestão seria tirar dois jogadores de cada lado – nove contra nove – e então resgataríamos espaço em campo, o que proporcionaria mais espetáculo, mais possibilidade de atuação individual. Teríamos uma postura muito mais artística dos jogadores. Hoje eles se escondem em questões táticas.
A que se deve isso?
Futebol é o único esporte que não se adaptou ao progresso da ciência esportiva. É impensável hoje uma prova de 100 metros rasos com cronômetro manual, ou uma rede de vôlei da altura que era. [Quando o vôlei foi inventado, no fim do século XIX, a rede ficava a 1,83m de altura, menor do que os jogadores de hoje. Conforme o esporte foi evoluindo, sua altura foi aumentando e, atualmente, ela deve ser posicionada a 2,10m do chão, no caso do vôlei masculino].
Os esportes vão se adaptando de acordo com a evolução física. Caso contrário, o aspecto físico começa a ser preponderante. A última evolução no futebol foi a lei de impedimento [de 1925].
Hoje em dia as propostas de evolução do futebol são engavetadas. Ninguém quer discutir! Existe um processo, um senso comum, de que o futebol não pode ser modificado. Quanta gente já morreu em campo? Mas ninguém mexe nisso, fala disso.
Enquanto o futebol não evolui, seus jogadores estão mais fortes.
O futebol não exige do físico, na verdade. Ele deixou de valorizar a arte. Este seria um “usurpador da arte”: o cara que tem mais preparo físico toma o lugar do artista. É o que aparece mais, se destaca, mas não pela arte. Teoricamente ele não deveria estar ali, mas ele tem preparo físico imenso e o futebol hoje em dia concede a esse atleta um tipo de valor.
Quais dos jogadores “artísticos” de hoje você levaria para a seleção?
Primeiro, o Ganso. Um grande jogador, o maior nos últimos cinco anos. Outros foram e são grandes jogadores individualmente. E eu não vejo o futebol como algo individual.
O futebol representa muito: representa a essência de uma sociedade como um todo, como espírito comunitário, divisão de atitude, de valores, de funções, a socialização de pessoas de classes diferentes... Tem todo o contexto social embutido.
É o único esporte que não tem um jogador central: no futebol americano, o quarterback é “o cara”; no vôlei, é o levantador; no beisebol, o pitcher. No futebol não tem. É extremamente democrático.
Tem como compará-lo [Ganso] a alguém da sua época?
Ademir da Guia. Não exatamente pelas habilidades técnicas, mas pelo comportamento. Também o Gérson. É o jogador fundamental. Hoje nós temos ausência de um cara assim. Se eu tivesse alguém assim no time, não abriria a mão nunca! Troco os outros dez e ainda assim tenho a mesma qualidade na equipe. Esse jogador faz o time jogar do mesmo jeito.
Além do Ganso...?
Ronaldinho e Neymar, mas mais pelo lado individual, porque eles podem mudar o jogo.
E quem o Dunga deve levar com certeza e que você deixaria de fora?
Acho desagradável falar isso. Porque isso não se relaciona com o cara, mas com a filosofia. Se eu citar um nome ou outro não vai dar em nada. Primeiro porque ele [Dunga] não vai entender o que eu quero dizer... Tem a ver com filosofia.
É difícil montar um conjunto para uma Copa. Quanto mais ferramentas você tiver na mão, mais espetáculo você oferece. Não é um campeonato, onde você monta time. Copa do Mundo não é campeonato, é acidente... Não sei se respondi sua pergunta, se viajei na maionese. Eu nem lembro sua pergunta. [Risos]
Eu defendo uma filosofia. Esses caras eu levaria. O Alex, por exemplo. Ninguém fala dele, mas ele estaria no meu time, sem dúvida. Mas o futebol não é feito só de gente. É coletivismo. Ao mesmo tempo em que você tem o artista, você tem que ter o fausto de guerra, o empreendedor, o policial e organizar a coisa toda.
Você tem uma filosofia, mas todos eles devem caber na sua equipe. Dos que são pouco valorizados, penso no Júlio Baptista. Ele joga em qualquer posição. Se bobear, até no gol. É um cara que, se eu tenho no campo, mudo minha tática na hora que eu quiser, sem substituição.
Como se forma um grupo para uma Copa? Por exemplo, o Felipão tinha a Família Scolari...
Ninguém manipula isso. Isso é um acidente. Não existe isso. Depende muito de estímulos externos.
Os ambientes [da Seleção Brasileira nas Copas] de 1982 e 1986 eram iguais?
Não. O de 1982 era muito bom. Era uma conjunção de fatores. Temos que estar atentos: numa equipe de futebol, deve haver uma referência técnica, um melhor, um que segure a barra – o líder.
E tem vários tipos de liderança. Tem o líder técnico – que não se impõe pela verbalização ou pela força, mas pela técnica – e este tem que ter em todo time de futebol.
E tem o líder nato, aquele que aguenta a barra – o cara que bate o pênalti no último minuto. Inclusive, ninguém sabe bater pênalti no Brasil. Eu aprendi a bater no último ano de carreira. Porque ninguém me ensinou. Se ninguém me ensinou é porque não tem técnico para isso.
E como se bate um pênalti?
Se o goleiro ficar imóvel e você tocar no canto, ele não chega. Não dá. Não tem impulso para isso. Mas se o goleiro estiver em movimento e acertar o canto, tem grandes chances de defender.
O ideal é não tomar distância da bola, esperar o goleiro parar – você não tem limite de tempo para bater o pênalti – e jogar no canto. O cara que vem andando, correndo...
Sem contar a paradinha, que eu acho uma puta sacanagem. Isso aí é falsidade ideológica para mim. Não é futebol: é pelotão de fuzilamento. É má-fé, negociata... Paradinha é isso.
Você já parou para rever o que deu errado naquele pênalti desperdiçado contra a França nas quartas-de-final da Copa de 1986?
Eu estava testando novos modelos. [Risos] Eu não errei! O goleiro que fez direito. É o jogo. Na partida anterior [contra a Polônia], eu bati o pênalti e marquei [aos 30 minutos do primeiro tempo]. Só que o goleiro [Jozef Mlynarczyk] se mexeu. E se o goleiro se mexer, eu jogo para o outro lado.
Como o goleiro da França [Joël Bats] não se mexeu, minha margem de risco aumentou muito. Tentei ludibriá-lo escolhendo o canto que ele não tivesse pé de apoio. E ele tava com o pé de apoio no canto que escolhi.
O Dunga foi chamado meio que para colocar ordem num time com supostos problemas de disciplina. O que acha de concentração?
É um absurdo. Num evento como esse, quem menos aproveita é o artista. Tem que ter farra! Ninguém gosta de ficar preso. Vamos jogar bola! Jogar bola é uma brincadeira de rua. Vamos chegar lá dia 10 de junho, treinar juntos, cada um arruma lugar para ficar, leva mulher e filhos... Pô, é muito mais prazeroso para todo mundo.
O cara tem que ser exigido pelo seu trabalho: se ele não jogar direito, a remuneração dele cai. Mas de resto...
Quando Leandro pediu dispensa para não ir à Copa de 1986 em solidariedade ao Renato [Gaúcho, cortado da seleção pelo técnico Telê Santana porque chegou tarde de uma balada às vésperas do embarque do time ao México], isso foi visto como “viadagem”! Como é que nós vamos educar nossos filhos se tratamos os melhores exemplos da pior forma possível?
Além desta história do Leandro e do Renato Gaúcho, houve mais atritos nos bastidores?
Não, não. Olha, nós tivemos duas folgas em três meses. Das duas às dez da noite. Às dez, quando as “muié” começam a sair de casa?! É uma sacanagem. Todo mundo tava querendo namorar, tomar cerveja, farrear... E você está preso num trabalho exaustivo. É inumano manter alguém assim. Só voltou na hora certa aquela noite [do incidente com Leandro e Renato Gaúcho] quem abriu mão de ser feliz.
O que você acha do merchandising hoje no futebol? Afeta algo em campo?
Se for avalizando o produto, aí cada um decide se aceita ou não. Agora se isso mexer na moral, no caráter do indivíduo, é questionável. Se bem que a sociedade o agride o tempo todo para que ele seja quem não é. Eu faria propaganda de cerveja porque tem a ver comigo. De leite, não.
Ótimas entrevistas, Marcelo. O Sócrates realmente era um personagem único. Coincidentemente comprei o livro do Andrew Downie na Black Friday e estou bastante curioso pra ler.
Tenho maior respeito pelo Sócrates. Ele jogando na época era um milagre, a gente saía do estádio e ia correndo para casa ver os programas esportivos para entender o gol porque ali, ao vivo, não dava, era rápido demais. Ele acabou sendo visto como líder da democracia corinthiana, mas hoje em retrospectiva acho que foi um movimento de grupo, sendo o Wladimir o mais politizado de todos e o Casagrande tendo grande importância também. Uma tragédia como o alcoolismo destruiu esse gigante brasileiro.