1950: a tragédia brasileira da bola
Derrota na final da Copa do Mundo no Maracanã rendeu o impecável Anatomia de Uma Derrota
Duas das grandes tragédias na história do Brasil aconteceram no esporte: a morte de Ayrton Senna no GP de San Marino de F1 em 1994 e a derrota da Seleção Brasileira para o Uruguai por 2 a 1, de virada, na final da Copa do Mundo de 1950 no Maracanã superlotado.
Este último assombrou não só o nosso futebol como a auto-estima e o orgulho da nação toda. Perder a Copa em casa com um time extraordinário era tudo que pedia o famoso “complexo de vira-latas” elaborado por Nelson Rodrigues.
A memória da dor nacional de 1950 não foi apagada nem pelos cinco títulos mundiais que a Seleção ganhou a partir de 1958. Nem foi superada pelo vexame dos 7 a 1 tomados da Alemanha na semifinal da Copa de 2014, também em solo brasileiro
Com toda sua complexidade, aquele jogo fatídico foi dissecado de forma magnĩfica em Anatomia de Uma Derrota: 16 de Julho de 1950 – Brasil x Uruguai, do jornalista, filósofo e crítico de cinema Paulo Perdigão (1939-2006), lançado em 1985.
O livro foi reeditado em 2014 pela L&PM numa versão revisada e atualizada com cerca de 100 páginas a mais que a edição original.
Perdigão tinha múltiplos talentos. Era profundo ao analisar cinema como no livro Western Clássico: Gênese e Estrutura de Shane (sobre o filme Os Brutos Também Amam).
Profundo também como tradutor do livro O Ser e o Nada, do filósofo francês Jean-Paul Sartre, sobre o qual também escreveu Existência & Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre (1995).
Apesar de tamanha profundidade, dedicou-se a escrever sobre um programa de humor dos tempos dourados do rádio brasileiro em No Ar: Prk-30!.
Mas talvez fosse um jogo de futebol a maior obsessão desse complexo autor. Aquela final da Copa de 1950 foi dissecada apaixonadamente por Perdigão, que estava presente no Maracanã junto a cerca de 200 mil outros torcedores (sim, cabia tudo isso no estádio naquela época).
Em 1971, Perdigão publicou um longo artigo sobre aquela derrota na revista Manchete. Foi a base para que ele desenvolvesse uma obra maior em livro.
Três anos depois de lançar Anatomia de Uma Derrota, o livro foi a inspiração para o roteiro do curta-metragem Barbosa, de 12 minutos.
No filme, um homem anônimo (Antônio Fagundes) viaja numa máquina do tempo até 1950 para orientar o goleiro Barbosa na hora do chute do uruguaio Ghiggia que determinou a derrota brasileira.
Só que o viajante do tempo distrai o goleiro ao chamar sua atenção e Barbosa toma o gol do Uruguai do mesmo jeito. Nem na ficção a tragédia foi evitada.
Anatomia de Uma Derrota recapitula a campanha brasileira na Copa de 1950 e ilustra como as vitórias de 7 a 1 sobre a Suécia e 6 a 1 sobre a Espanha criaram um clima de “já ganhou” no país nos dias que antecederam o jogo final contra os uruguaios.
Perdigão relata todo o oba-oba de papagaios de pirata na concentração da Seleção na véspera e na manhã do dia da final.
Também registra a indignação dos uruguaios, liderados pelo raçudo capitão Obdulio Varela, ao topar com um jornal que estampava uma foto do time do Brasil e a manchete “Eis os campeões do mundo!”.
O autor utiliza como esqueleto de seus relatos e análises a gravação da transmissão da partida pela Rádio Nacional, num minuto a minuto cheio de comentários que dão contexto.
Perdigão presta atenção até ao ruído de fundo produzido pela torcida em determinadas jogadas decisivas.
Os momentos do gol de Ghiggia, que sacramentou a vitória uruguaia aos 34 minutos do 2° tempo, e da desordenada e desesperada ofensiva brasileira pelo gol de empate nos onze minutos restantes são de tirar o fôlego, aflitivos. Me impressionam até hoje.
(Vale explicar que o gol de empate assegurava o título para o Brasil. A Copa de 1950 foi a única disputada com uma fase final de quatro seleções. O país com mais pontos nesse quadrangular seria o campeão. Foi acidental que Brasil e Uruguai se enfrentassem na última rodada sendo os únicos candidatos ao título.)
Que este livro sobre uma grande derrota seja um dos melhores sobre futebol já publicados (e isso em qualquer idioma) só comprova o significado que a Copa de 1950 tem na nossa história de país.
P.S.: Há um livro uruguaio extraordinário, contando o lado dos vitoriosos. É Maracanã: Os Labirintos do Caráter, de Franklin Morales. Foi publicado no Brasil em e-book em 2014 pela Companhia das Letras. Felizmente, segue disponível. Indico fortemente.
Meu exemplar é uruguaio, comprado em Montevidéu em janeiro de 2009. Os antecedentes da Copa de 1950 impressionam tanto quanto a conquista de muita garra da Celeste Olímpica.
O capitão do Peñarol e da seleção uruguaia Obdulio Varela comandou entre 1948 e 1949 uma greve de jogadores por melhores salários. Líder nato, Obdulio se desdobrou para manter as famílias dos jogadores abastecidas durante a longa paralisação.
Curiosamente, a equipe uruguaia foi praticamente montada em cima da hora para o Mundial. Por causa da greve, o país enviou uma seleção amadora para a Copa América de 1949, também no Brasil. No confronto direto do turno único, o Brasil venceu por 5 a 1, um resultado que ficou sem significado algum para a história.
Que maravilha lembrar desse importante, e único em vários sentidos, livro de Paulo Perdigão. Já o de Morales, não conheço, mas estou indo procurar agora!
Vale como anexo ainda o Barbosa, do Roberto Muylaert, que foca na figura do goleiro. Tem um capítulo em que ele narra como se fosse a bola do gol que é um troço genial.