Zagallo, o autor
Obscuro livro de memórias do técnico conta como foi a conquista da Copa de 1970
Só tenho conhecimento da existência de um livro de autoria do ex-jogador e ex-técnico de futebol Zagallo (1931-2024) chamado As Lições da Copa porque um dia encontrei um exemplar num sebo e comprei.
Nunca vi qualquer crítica ou análise sobre a obra nem na mídia impressa nem na vastidão da internet (a não ser por eventuais sebos virtuais vendendo o livro, mas sem entrar em detalhes do conteúdo).
O livro foi lançado em 1971 pela Bloch Editores, o braço livreiro da empresa que publicava a revista Manchete.
Servia para celebrar um ano da conquista do tricampeonato mundial de futebol pela Seleção Brasileira em 1970 no México, com Mário Jorge Lobo Zagallo como técnico, poucos anos depois de ser campeão mundial como jogador nas Copas de 1958 e 1962.
Curiosamente, a capa traz a grafia “Zagalo”, com um “L” só. Assim o nome dele foi escrito em toda a imprensa desde os anos 1950 até ele revelar à Folha de S. Paulo nos anos 1990 que seu sobrenome era Zagallo com dois “L” em seus documentos. Toda a mídia passou a adotar a grafia correta desde então.
O relato é em primeira pessoa, com Zagallo desfilando memórias da preparação do Brasil para a Copa e tudo que ele se recorda de cada uma das seis partidas do “escrete canarinho”.
É nítido que o livro foi feito com Zagallo dando depoimentos que depois foram transformados em texto escrito por um ghost writer sem identificação nos créditos.
Isso é um problema do livro. O tal ghost writer escreve de maneira floreada e antiquada – como chamar uma partida de futebol de “prélio”. Fica um pouco caricato imaginar Zagallo, o autor oficial, como um beletrista.
Isso poderá ser detectado abaixo em alguns trechos destacados.
Na introdução, Zagallo relembra o dia da conquista, desde o levantamento da taça pelo capitão Carlos Alberto Torres até se servir de um copo de uísque quando finalmente ficou sozinho em seu quarto na concentração.
Também se recorda de como se tornou o técnico da Seleção Brasileira em março de 1970, apenas três meses antes da Copa do Mundo.
O momento da entrega da taça tem alguns daqueles tais floreios do ghost writer que mencionei acima:
“Aquele momento em que Carlos Alberto levantou a Taça Jules Rimet era o da consagração. Eu o sentia com um júbilo enternecido, no mais íntimo da alma, por haver contribuído, nos três campeonatos, para que a Taça ficasse no Brasil em definitivo. Mas aquele momento não era meu, era nosso.”
Um capítulo inicial trata do dilema vivido com o craque Tostão. Em 1969, ele foi o artilheiro da Seleção nas Eliminatórias fazendo dupla de ataque com Pelé sob o comando do técnico e jornalista João Saldanha.
Ainda em 1969, Tostão levou uma violenta bolada no olho esquerdo defendendo o Cruzeiro num jogo contra o Corinthians. Sofreu descolamento de retina, foi operado e não só sua presença na Copa era dúvida como sua própria carreira.
A recuperação do olho de Tostão causou apreensão até que ficou provado que ele poderia atuar no mundial sem maiores problemas.
Mas havia outro fator complicador, como o próprio Zagallo conta: quando assumiu, o Velho Lobo via Tostão disputando posição com Pelé e não como parceiro de ataque, como aconteceria na Copa.
“Pelé ou Tostão? Tostão ou Pelé? No íntimo da dúvida, quanto à escalação de ambos os grandes jogadores, também admitia: ‘Tostão não está bom. Se colocar o rapaz para jogar, poderei ser um criminoso. E se ele ficar cego?’ O tremendo receio afundava-me na angústia de um grande drama interior. Somente eu sei!
Meu drama íntimo agravava-se quando tinha que ir ao Tostão. Procurava falar pouco. Sempre que me dirigia a ele, não sei se maquinalmente ou se pela aparência de não ser boa uma de suas vistas, meu olhar se concentrava nos seus olhos. Cá por dentro, fazia um esforço terrível para só ver a vista sã do jogador. Eu sabia que, se percebesse minha preocupação, ele iria ao arrasamento psicológico.”
Zagallo pouco cita pelo nome seu antecessor João Saldanha. Mas se estende em explicações sobre a grande mudança de padrão de jogo que realizou – e que ele defende que foi fundamental para a conquista do título.
Saiu o 4-2-4 com dois pontas abertos de Saldanha e entrou o 4-3-3 com um falso ponta-esquerda (no caso, Rivellino) fechando o meio-campo.
“Meu espírito nunca deixou de ter presente o sentido exato de uma disputa de campeonato mundial. Por que não proceder racionalmente? Se em 1958 mostramos ao mundo como ser jogado o melhor futebol e se a amostragem consagrada redoirou-se em 1962, por que desmerecer os fatores do nosso estupendo sucesso numa insegura tentativa de mudança radical? Por que trocar o certo pelo duvidoso?”
(...)
“Eu achava que a nossa Seleção, durante a fase classificatória, vinha exibindo um futebol que não daria ao menos para a saída, nos jogos preliminares da Copa.
Cada técnico tem seu modo próprio de agir, refletir e decidir. Mas eu também me dava conta de que, com o esquema aplicado, nossa Seleção poderia ser atraída pelo mesmo risco observado em relação à do Peru, por exemplo. Os peruanos jogavam a descoberto; o jogo franco fê-los perder no momento em que mais precisariam da vitória [derrota de 4 a 2 para o Brasil nas quartas-de-final]. Eles atuaram com base em esquema parecido com aquele utilizado pelos brasileiros no período de classificação.”
Há um capítulo para cada jogo. Na primeira fase, o mais difícil foi contra a Inglaterra, campeã do mundo de 1966. Zagallo acredita que a soberba dos ingleses serviu para que o Brasil ganhasse a partida por 1 a 0.
“Demos início ao preparo da Seleção para enfrentar o temível leão da terra de John Bull. Osso duro de roer… A equipe que teríamos contra nós no prélio seguinte era fortíssima; apresentaria um futebol maravilhoso. Além disto, já se recomendava de antemão, em face de ostentar o título de campeã do mundo. Mas acontece, muitas vezes, que não vale a pena criar-se a fama em troco do direito de deitar-se na cama.
A glória do título conquistado em 1966 talvez tenha virado a cabeça do time inglês. Este não se cuidou como valeria a pena, contando possuir futebol de sobra. É possível que visse ouro onde havia gás. Não sei se estou totalmente certo, quanto a isto, embora convencido de que os britânicos se superestimaram.”
Outro jogo difícil e tenso foi na semifinal contra o Uruguai, 20 anos depois de o país vizinho ganhar a Copa derrotando o Brasil no Maracanã.
Zagallo confiava na técnica da Seleção, mas sabia que a guerra de nervos – especialidade uruguaia – poderia ser decisiva. E preparou o time para anular esse fator.
“Sentia-me bem respaldado, mesmo quando pensava na agravante que poderia influenciar o jogo: a catimba uruguaia. Não haveríamos de ser enfeitiçados pela catimba.
Nossos jogadores já estavam imunizados contra a cusparada, contra as provocações irritantes, contra os truques impróprios e contra as xingações torpes. Eles conheciam o despudor do gesto obsceno; aquela passada de mão por trás do adversário com o intuito de afrontar-lhe o brio, forçar-lhe o descontrole e levá-lo à expulsão motivada pelo revide deflagrado numa bofetada. Tratava-se da disputa de uma Copa do Mundo, que impõe ao sangue frio a plenitude da presença viril.”
No pré e o pós da final contra a Itália, que o Brasil venceu por 4 a 1, é a chance do conservador, patriota e ex-soldado da Polícia do Exército Zagallo enfiar algumas bajulações ao ditador em exercício da presidência, general Emílio Garrastazu Médici.
Para o regime militar, Zagallo foi uma escolha mais adequada como técnico da Seleção que João Saldanha, comunista de carteirinha do clandestino PCB (Partido Comunista Brasileiro).
Saldanha caiu porque não queria convocar o centroavante Dario (o “Dadá Maravilha”) como pedia Médici publicamente. Um dos primeiros atos de Zagallo na Seleção foi… convocar Dario.
Lembrando dos instantes antes da final, Zagallo achou uma brecha para agradecer o apoio do presidente Médici.
“Haveríamos de ser tricampeões, porque nada nos faltava dentro ou fora da Seleção. (...) Tínhamos por nós a ordem, a paz, a harmonia, a compreensão e a estima das autoridades públicas e desportivas. Tínhamos a assistência indormida e amena de todo o comando da Delegação, com a cobertura estóica do Presidente da CBD [João Havelange, futuro presidente da FIFA]. De longe, o próprio presidente Médici nos acenava com a sua torcida e a sua confiança.”
Mais louvores ao ditador vieram na recepção que a delegação tricampeã mundial teve em Brasília.
“Tive a honra de ser o primeiro a receber o abraço do nosso presidente. Honra de igual quilate foi a que me proporcionou Dona Scyla Médici: de suas mãos fidalgas, recebi a primeira fatia do bolo, comemorativo de nossa vitória.
(...)
Aquele espetáculo vivido em Brasília ficará para sempre na minha memória. O reencontro com o povo do meu país, o acolhimento que o presidente e sua família nos dispensaram, a transbordante união de grandes e pequenos – porque “tudo é um só coração” – eis imagens que não serão embotadas.”
Zagallo conclui o livro com um capítulo de vingança contra os jornalistas que não confiavam na Seleção e/ou criticavam seu trabalho. Especialmente o hoje esquecido comentarista paulista Geraldo Bretas, da TV Tupi, notório por seu estilo desbocado e pelas polêmicas que criava.
E com outro capítulo inteiro sobre o que Pelé fez na Copa (ou não fez, como os maravilhosos gols perdidos contra Tchecoslováquia, Inglaterra e Uruguai). Com uma alfinetada em Saldanha, que tinha dito que Pelé era míope semanas antes de ser demitido.
É um documento curioso. E, apesar de o futebol ter mudado tanto nos últimos 50 e poucos anos, algumas análises táticas de Zagallo fazem todo o sentido e são avançadas para o futebol daquela época.
Jovem técnico de 38 anos durante a Copa de 1970, ele fez de tudo no livro para provar que não herdou o time pronto de João Saldanha. A seu modo, e mesmo com um ghost writer rebuscado, ele conseguiu.
O obsessivo Zagallo sempre em busca de provar que ele era quem era... A sombra do João Saldanha incomodava. Tentar se colocar no lugar dele, Marcelo, é dureza!! Estados de exceção geram danos incontornáveis...