Uma conversa com Sir George Martin
Produtor dos Beatles falou comigo quando lançou seu álbum para sair de cena

Quando você entra para a história como um dos realizadores de alguns dos maiores álbuns da música pop, nada mais natural do que fazer um trabalho para sair de cena prestando tributo aos quatro artistas que fizeram você conquistar sua fama e até um título de Sir da nobreza britânica.
Foi o que fez o produtor e maestro Sir George Martin (1926-2016) em 1998 com o álbum In My Life, em que ele reúne artistas da música e do cinema para fazer covers dos Beatles, uma certa banda inglesa de Liverpool que ele produziu de 1962 a 1969 (vá lá, pode arredondar para 1970 só para dar o tempo exato em que o grupo existiu).
Na época do lançamento, Martin não via o álbum como uma despedida ou aposentadoria definitiva, mas não acreditava que realizaria outra obra musical completa.
Ele tinha meros 72 anos de idade (e viveria mais 18), porém a audição já não era mais a mesma.
Por causa de In My Life, tive a oportunidade profissional de entrevistar George Martin por telefone – ele em Londres – para o jornal Folha de S. Paulo. A conversa foi publicada em 20 de junho de 1998.
O disco foi mais uma curiosidade que uma obra consistente, pouco rock e muito pop adulto adocicado – exceção feita à cover instrumental de “A Day in the Life” que ficou a cargo do exímio guitarrista Jeff Beck (1944-2023).
Na versão lançada por aqui, o álbum tem até um pedacinho de Brasil com a participação do coral Meninas Cantoras de Petrópolis, que deixou Martin encantado quando passou por aqui em 1993, na faixa “Ticket to Ride”.
Em questão de prestar tributo à sua história com os Beatles, Martin já tinha feito uma contribuição muito mais admirável em livro.
Com a ajuda e parceria do escritor britânico William Pearson, ele publicou em 1994 Summer of Love: The Making of Sgt.Pepper, em que conta a saga de nove meses da produção do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, que os Beatles lançaram em 1967 para deixar o público mundial boquiaberto.
Com o título Paz, Amor e Sgt. Pepper: Os Bastidores do Disco Mais Importante dos Beatles, a obra foi publicada originalmente no Brasil em 1995 pela editora Relume Dumará. Em 2017, teve direito a um relançamento pela Sonora Editora.
O livro é um daqueles fundamentais para saber como os Beatles – e Martin – trabalhavam. Alguns aspectos mais técnicos de estúdio podem ser enfadonhos para quem não se interessa por esse lado, mas não tira qualquer pedacinho da qualidade do texto.
Pude ter contato com um tiquinho da sabedoria musical de George Martin durante a entrevista. E posso dizer que jamais falei com alguém que tivesse um sotaque inglês tão altivo e correto quanto ele. Realmente, foi falar com um Sir.
Abaixo, a entrevista conforme foi publicada na Folha, apenas com alguns ajustes ortográficos e gramaticais atualizados por mim, além de parênteses com datas:
O que lhe inspirou a fazer um álbum com covers dos Beatles?
Quando tive a ideia de fazer um último álbum há dois anos, queria fazer algo com que sentisse prazer. Não queria trabalhar duro. Então pedi a alguns amigos e alguns de meus heróis para colaborar comigo nisso. Cheguei a pensar em compor um álbum novo com minha própria música. Mas, em certa altura da vida, aprendi que isso seria tolo, porque parece que todo mundo me liga aos Beatles. Então pensei em escolher canções dos Beatles não muito regravadas.
Comecei com alguns dos meus amigos, como Jeff Beck e Phil Collins (1951-). Depois, pessoas que admiro muito e eu sentia que teríamos bons momentos trabalhando juntos, mas que eu nunca tinha encontrado, como Robin Williams (1951-2014), Goldie Hawn (1945-), Jim Carrey (1962-)...
E Sean Connery (1930-2020) era um herói ou um amigo?
Eu já o conhecia. Acho-o um dos melhores atores. E, neste caso, a música veio antes e o artista veio depois. Eu não queria ter “In My Life” cantada em meu álbum. Eu queria que as palavras se destacassem porque são muito importantes. E Sean Connery tem uma grande voz.
Como o sr. escolheu as Meninas Cantoras de Petrópolis para participar do álbum (em “Ticket to Ride”, apenas na edição brasileira do CD)?
Eu as queria no disco pela afeição que tenho desde quando estive no Rio há alguns anos (1993). Eu ia reger um concerto com uma orquestra sinfônica, um grande coral e uma boa seção rítmica. Foi na Quinta da Boa Vista. Mas, na noite do concerto, choveu e a orquestra não pôde tocar. Persuadi o coral a cantar na chuva comigo. Fizeram uma noite da qual sempre vou lembrar. Quando fui fazer o álbum, chamei-as.
As canções e as gravações dos Beatles são um tipo de música muito forte. Qual a dificuldade de fazer uma boa versão de uma música deles?
Acho que depende muito da canção. No caso de Goldie Hawn, tive a ideia de transformar “A Hard Day’s Night” em algo com o clima de um jazz calmo. Quando sugeri que ela cantasse, ela pensou que eu estava louco. Acho que ela cantou melhor do que qualquer um poderia esperar.
O sr. está se aposentando?
Não estou me aposentando. Estou tentando reduzir meu trabalho. O que estou fazendo é parar de gravar discos. São quase 50 anos e fiz muitos discos. Estou velho e minha audição não é tão boa quanto antes.
Há alguma música dos Beatles que o sr. deseja que eles tivessem feito de novo?
John Lennon (1940-1980) e eu conversamos sobre isso pouco antes de ele morrer. Ele me disse: "Eu gostaria de gravar tudo de novo". E eu não conseguia imaginar fazer tudo aquilo de novo. Perguntei: "Mas e uma música como ‘Strawberry Fields Forever’?” Ele falou: "Sim, especialmente ‘Strawberry Fields’”. Isso era porque John sempre queria ser melhor do que ele realmente já era. Mas eu não gosto de fazer coisas de novo.
O sr. ouve música feita atualmente?
Sim. As canções não são tão boas. Há mais produção. Escuto a música que produzimos nos anos 1960 e 1970, e é muito boa. Não acho o que ouço sendo feito hoje tão bom quanto. Mas uma boa banda hoje é Radiohead.
Marcelo, que legal esta entrevista. Você já leu a biografia dele em 2vols escrita por Kenneth Womack? É bem interessante, fora o período 62-69, lembro bem da formação musical dele e o conhecimento do estúdio... Abraço