Senna e Prost: inimigos reais
Livro The Power and the Glory detalha cada etapa da maior rivalidade da Fórmula 1
O dia em que mais trabalhei na vida — em intensidade, não em quantidade de horas, embora tenha sido longo — foi 1º de maio de 1994. Morte do Ayrton Senna (1960-1994), é claro.
Um dia que começou cedinho, ainda zonzo de sono e bocejando, para assistir em casa o GP de San Marino de Fórmula 1, no autódromo de Ímola, na Itália, e depois ir trabalhar no plantão de domingo no jornal Notĩcias Populares.
Eu não só era editor de Esportes no jornal como ainda gostava bastante de F1 (algo que se apagou em mim no século XXI), embora Senna nunca tenha sido meu ídolo.
Graças a esse passado de apreciador de F1, já li vários livros sobre a categoria, alguns sobre Senna.
E o melhor que li sobre o trágico piloto brasileiro é The Power and The Glory: Senna, Prost and F1's Golden Era, do jornalista britânico David Sedgwick, publicado em 2018.
O livro se concentra na rivalidade entre os multicampeões Ayrton Senna (3 títulos) e o francês Alain Prost (4 títulos), embora também trace um panorama mais amplo do que foi a Fórmula 1 na década de 1980 e primeira metade da de 1990.
Era de um "novo profissionalismo”, como define Sedgwick, nunca antes visto na categoria. E, ao mesmo tempo, de inimizades intensas também inéditas.
“The Power and The Glory não é apenas a história de uma luta épica entre dois colossos que dominaram seu esporte escolhido numa era única, também é a história de uma era sem precedentes numa escalada de pura intriga”, escreveu o autor na introdução.
Pode-se dizer que a rivalidade dos dois pilotos nasceu no GP de Mônaco de 1984, quando Prost tinha em sua McLaren o melhor carro da temporada e Senna era um calouro da F1 andando num calhambeque chamado Toleman.
Naquela corrida, choveu sobre Monte Carlo muito antes da largada e o toró atrasou a prova em quase uma hora. A pista de rua, já difícil para ultrapassagens com tempo seco, criou uma situação impraticável para os pilotos.
Prost liderava com tranquilidade quanto à colocação e à distância em relação aos outros, mas com seu eterno desconforto de pilotar debaixo de chuva e com asfalto molhado.
Já Senna começou a criar sua fama de piloto-anfíbio neste GP. Mesmo com um carro limitadíssimo, acelerou forte e foi ultrapassando adversários até alcançar o 2º lugar. Nesta posição, foi encurtando volta a volta sua distância para o líder Prost.
Ciente da aproximação, Prost começou a fazer sinais para encerrar a prova sempre que passava pelo diretor de prova, o ex-piloto belga Jacky Ickx.
Ickx atendeu ao pedido na 32ª volta, dando a bandeirada que encerrou a corrida justamente quando Ayrton ultrapassou Prost na reta de chegada.
Mas o francês foi considerado o vencedor porque num encerramento com a corrida pela metade, valem as colocações da volta anterior à bandeirada, de acordo com a interpretação oficial do regulamento.
Sedgwick registra que Toleman e Tyrrell (cujo piloto novato Stefan Bellof acabou em 3º e também deu show na chuva) desconfiaram muito da decisão.
A vitória de Prost foi confirmada e, como a corrida acabou antes dos 75% de distância percorridos, os pontos valeram pela metade. Prost ganhou 4,5 pontos (na época, a vitória valia 9 pontos).
No final do campeonato, ele perdeu o título para o austríaco Niki Lauda, também da McLaren, por 0,5 ponto.
Se tivesse corrido até o fim, mesmo que em 2º lugar atrás de Senna, Prost teria ganhado 6 pontos e levaria o título, que seria seu primeiro – ele conseguiria quebrar o tabu em 1985 e seria bi em 1986.
Senna, com seu temperamento obcecado, nunca engoliu a vitória que lhe “roubaram” em Mônaco. Ele só teria sua primeira vitória em 1985, quando já tinha se mudado para a Lotus.
Sedgwick faz um relato detalhado da corrida de Mônaco e da evolução de Senna até o 2º lugar. E reproduz alguns momentos-chave da entrevista coletiva da qual Prost e Senna participaram após a corrida:
“‘Algum problema hoje, Alain?’, perguntou um jornalista. ‘Apenas pneus e freios, ah, e o turbo e depois começaram as vibrações…’ O Professor enumerou um catálogo sem fim de problemas. Ao seu lado, o 2º colocado Senna franziu a testa. E não se aguentou mais. ‘Meus freios também não estavam perfeitos’, contrapôs o brasileiro, nitidamente de saco cheio da lista de choradeiras do vencedor. Prost ficou em silêncio. E estaria a imprensa ciente de que ele [Senna] também teve queimaduras nas costas devido a um vazamento de combustível na Toleman? (...) ‘Só que você não nota a dor enquanto está lutando’, sorriu Ayrton.”
No dia em que tivesse um carro melhor ou igual, ele mentalizaria Prost como o adversário a ser superado, mais que outros dois pilotos de ponta dos anos 1980, o inglês Nigel Mansell e o compatriota Nelson Piquet, hoje bolsonarista (e pensar que o pai dele foi ministro da Saúde do presidente João Goulart entre 1961 e 1962…).
Em 1988, depois de três temporadas na Lotus, Ayrton foi para a McLaren, supostamente para ser segundo piloto em relação a Alain Prost, que já tinha vencido dois campeonatos pela escuderia.
A partir daí, a narrativa de Sedgwick cresce porque ele conta cada minúcia de cada bastidor de cada GP das duas temporadas (1988 e 1989) em que Senna e Prost foram companheiros de equipe na McLaren até não suportarem mais um ver a cara do outro.
Contratar Ayrton foi a maneira de Ron Dennis, o chefe da McLaren, garantir que seus carros fossem equipados com os poderosos motores Honda.
A empresa japonesa colocou uma condição para fornecer seus motores: a equipe deveria ter um dos principais pilotos brasileiros, fosse Senna (que, na Lotus, contava com os motores Honda), fosse Piquet (que acabara de ganhar o título de 1987 pela Williams com motores Honda). Ron Dennis optou pelo mais jovem.
(Deu muito certo: a McLaren-Honda só não venceu um GP em toda a temporada de 1988.)
Senna tratou logo de mostrar que não ia se conformar em ser segundo piloto. Fez pole positions, ganhou corridas e, supostamente, desrespeitou um acordo de não-ultrapassagem feito com Prost.
Além disso, contava com a simpatia dos mecânicos da Honda que cuidavam dos motores.
Essa tal quebra de acordo de não-ultrapassagem foi o que levou Prost a trabalhar sorrateiramente nos bastidores da McLaren para retomar o terreno perdido para Senna.
Fez-se de vítima, insinuou favorecimento da Honda ao brasileiro, criou um clima que só azedou cada vez mais os boxes.
Senna garantiu seu primeiro título ao vencer o GP do Japão de 1988, ultrapassando Prost durante a corrida.
Em 1989, Ayrton começou parecendo que chegaria ao bi, mas começou a se complicar na pontuação e foi superado na tabela de pontos pelo francês, cada vez mais safo nas manipulações de bastidores.
A rixa culminaria na fechada que Prost deu em Senna no fim do GP do Japão de 1989. O francês desistiu de voltar à pista e Senna concluiu a prova em 1º, mas foi desclassificado – o que garantiu o terceiro título mundial de Prost, que na sequência bandeou-se para a Ferrari.
Senna brigou muito para rever junto à FIA aquela vitória no Japão que o manteria na briga pelo título.
Essa batalha específica acabou quando Senna não ganhou o GP da Austrália e ficou sem chances matemáticas de ser campeão mesmo que lhe devolvessem a vitória no Japão.
Como o presidente da entidade máxima do automobilismo mundial era presidida por um francês com passado meio obscuro chamado Jean-Marie Ballestre, todas as decisões penderam para o lado de Prost.
Mas Senna seguiu se rebelando contra as decisões por semanas, meses, até ser ameaçado de suspensão ou até expulsão da F1. De algum jeito, ele foi convencido pela McLaren a baixar a bola, acatar as decisões e trabalhar para recuperar seu título na pista em 1990.
Para que Senna pudesse correr, a McLaren elaborou um pedido de desculpas à FIA em nome do piloto, às vésperas da primeira corrida da temporada de 1990.
Com a saída de Prost da McLaren, Ayrton passava a ser o inconteste primeiro piloto, já que o novo contratado, o austríaco Gerhard Berger, não tinha a menor intenção de incomodá-lo na briga pelo título.
O rival de Senna continuaria sendo Prost, agora num carro todo vermelho da Ferrari. E um carro muito bom, diga-se. Tanto que conseguiu disputar o título com Senna até, mais uma vez, o GP do Japão.
Ali, Senna se vingou da fechada no ano anterior. Logo na primeira curva após a largada, numa manobra quase suicida, o brasileiro não afinou para o bote de Prost para fazer a primeira curva na frente. A McLaren e a Ferrari colidiram e saíram da pista e da corrida.
Como Senna dependia apenas de que Prost não vencesse aquele GP, seu segundo título estava garantido. Mas foi cobrado pelo que poderia ser considerado como atitude antidesportiva.
“Se alguém quer pilotar desse jeito, então o esporte acabou”, reclamou Prost, alucinado de raiva, também chamando Senna de “homem sem valor”, conforme relata Sedgwick no livro.
Senna, que segundo Sedgwick passou a noite de sábado para domingo em claro pensando no que faria se Prost forçasse a ultrapassagem, manteve uma postura cool. “Ele arriscou na entrada para a primeira curva de um jeito que não poderia. Ele sabia que eu viria pelo lado de dentro e me fechou a porta”.
Ron Dennis, o chefe de Senna na McLaren, apoiou seu piloto campeão. Disse que era uma forma de “justiça cruel”, remetendo à fechada de Prost na pista de Suzuka no ano anterior.
Em 1991, o carro da Ferrari ficou inferior e comeu poeira das McLaren e das Williams. Em vez de Prost, o maior rival de Senna na temporada em que garantiu seu tricampeonato foi Nigel Mansell, da Williams.
Em 1992, Prost tirou um ano sabático. Tentou arrumar lugar na Williams mas a equipe manteve Mansell que, com um carro muito avançado e melhor que todos os outros, garantiu seu único título mundial.
Senna foi vice, mesmo com uma McLaren também inferior às dos anos anteriores.
Para 1993, a surpresa. Prost conseguiu seu sonhado lugarzinho na Williams. Mesmo campeão, Mansell optou por sair para a Fórmula Indy em vez de ser colega de equipe do ardiloso francês.
Prost estava tão com as cartas na mão que incluiu em contrato uma cláusula proibindo a Williams de contratar Senna enquanto ele estivesse na equipe – estragando os sonhos de Frank Williams, o dono da escuderia.
Senna até tentou forçar sua ida para a Williams em 1993, mas o contrato de Prost foi mais poderoso e o brasileiro teve de se contentar em passar mais um ano na McLaren.
A Williams foi muito superior às outras equipes e Prost garantiu seu tetracampeonato com muita tranquilidade. Mas Senna teve alguns triunfos pontuais que valeram como vitórias de Davi contra Golias.
No GP do Brasil, em Interlagos, Prost derrapou sozinho numa poça enorme durante uma breve chuva no meio da corrida e deixou a prova. Senna garantiu sua segunda vitória em casa.
No GP da Europa, no circuito inglês de Donington, Senna fez uma das corridas de sua vida – novamente debaixo de chuva.
Largou mais atrás e fez uma primeira volta perfeita superando todos os pilotos que estavam à sua frente, inclusive Prost. Sua vitória na prova entrou para a história da F1.
E, na última corrida do ano, o GP da Austrália, Senna alcançou a derradeira vitória de sua carreira (e sua vida).
No pódio, ele e Prost (que se aposentou naquele GP, liberando a ida de Ayrton para a Williams em 1994) trocaram sorrisos e sinalizaram um inesperado cachimbo da paz.
E é exatamente neste ponto que o autor Sedgwick encerra sua narrativa em The Power and the Glory. Ele escreveu:
“A decisão de onde encerrar o livro foi a menos problemática – a temporada final, 1993, já que a breve passagem de Senna pela Williams e sua morte trágica foram exaustivamente contadas em outras obras. Nossa história é concluída no Grand Prix da Austrália de 1993. Este foi o último Grand Prix em que os dois grandes campeões competiram diretamente. Os dois gladiadores ficaram em pé juntos no pódio, sorrindo, acenando e se abraçando, rivalidade enterrada, velhas contendas aparentemente esquecidas.
Prost – que terminou em 2º – rumava ao crepúsculo da aposentadoria depois de assegurar o quarto título mundial de sua carreira fabulosamente vencedora. E Senna – o vencedor naquele dia – estava prestes a iniciar um novo capítulo ao se transferir para a equipe Williams, embarcando numa associação que indubitavelmente lhe renderia inúmeras vitórias, bem como mais títulos mundiais.
Mas não era para ser assim.”
Vou ter que comprar esse. Não conhecia, valeu demais 🤟
Maravilha de texto. Bom trabalho!! ☺️ Uma síntese da rivalidade entre os dois gigantes. Olhando pra trás é de se confirmar o que disse o autor da obra que você analisou: não precisavam exagerar... Pena que a F1 perdeu seus encantos desde então!