Robert Crumb e sua capa de LP clássica
Biografia do desenhista conta criação de HQ para álbum da banda de Janis Joplin
Uma das capas de disco mais marcante da história do rock é a de Cheap Thrills, álbum de 1968 da cantora Janis Joplin (1943-1970) com sua então banda Big Brother and the Holding Company. O autor é o mais notório quadrinista do underground americano, Robert Crumb (1943-) – ou R. Crumb, como ele prefere assinar.
Um pouco da história de como o desenhista fez uma capa em quadrinhos é contada no novo livro Crumb: A Cartoonist's Life, de Dan Nadel, que contou com a colaboração do biografado.
Em 1968, ano tão propenso à contracultura, Crumb já era notório no cenário pop havia um ano, graças a sua própria revista em quadrinhos independente Zap Comix.
Ele lançou sua publicação quando morava em San Francisco, no litoral Oeste dos EUA, em meio à efervescência da cultura hippie que explodiu na cidade californiana em 1967. Mas sua trajetória artística começou um pouco antes disso.
Católico reprimido na juventude e natural de Filadélfia, no Leste dos EUA, Crumb começou a ser publicado em 1965 pela revista satírica Help!, de Harvey Kurtzman (1924-1993), o criador da MAD nos anos 1950.
Também em 1965, emplacou histórias de Fritz The Cat, seu primeiro personagem clássico, na revista masculina Cavalier.
Nessa época, Crumb morava em Cleveland, no Meio Oeste americano, depois de se mudar com a família para várias cidades americanas.
Em 1966, a cabeça de Crumb sofreu uma revolução depois de tomar LSD. As viagens de ácido fizeram com que ele encarasse seus quadrinhos de forma mais radical, satirizando a sociedade e abordando repressões sexuais (muitas dele próprio).
Não era material para publicações do mainstream. E, após se mudar para San Francisco no comecinho de 1967, Crumb tratou de produzir sua própria revista de HQ de forma independente e sem restrições e censuras, a Zap Comix.
Nessa época, San Francisco já gestava uma revolução de costumes contracultural alimentada por muito rock e LSD que explodiu em meados de 1967. Ajudada em muito pela repercussão do Monterey Pop Festival, na não tão distante cidade de Monterey (duas horas de carro).

O ambiente em San Francisco era muito propício e a revista de HQ de Crumb transformou-o numa celebridade daquela que se tornava a capital pop dos EUA naquele momento.
Outra celebridade repentina da cidade era Janis Joplin, que brilhou no Monterey Pop Festival em junho de 1967. Ela era apenas a cantora da banda Big Brother and the Holding Company, que ainda estava por lançar seu primeiro álbum em agosto.
A performance eletrizante dela ofuscou todos os músicos no palco. E rivalizou com outros grandes destaques do festival, como Jimi Hendrix, The Who, Otis Redding e o citarista indiano Ravi Shankar.
Todos tiveram presença marcante no documentário Monterey Pop, que chegou aos cinemas em dezembro de 1968. Mesmo mês em que Janis, já uma estrela badalada do rock, abandonou o Big Brother and the Holding Company para seguir em carreira solo acompanhada por músicos mais profissionais e supostamente mais competentes.
A transformação de Janis em estrela de primeira linha deveu-se muito também ao seu segundo álbum, Cheap Thrills, lançado em agosto com as hoje clássicas covers de “Summertime”, “Piece of My Heart” e “Ball and Chain”.
É aqui que voltamos ao assunto da capa que Robert Crumb fez para o disco.
Crumb e Joplin moravam bem perto, nas proximidades da famosa esquina das ruas Haight e Ashbury, em San Francisco – o distrito de Haight-Ashbury, que tinha a maior concentração de hippies do planeta.
Em meados de 1968, segundo o livro de Dan Nadel, Crumb escreveu todo empolgado para seu amigo Mike Britt:
“Ficando chapado e bebendo vinho. Nunca pensei que veria dias assim. Mas tá tudo certo, manhê! Fiquei famoso… Todo mundo me ama pelo meu trabalho… agora só falta trabalhar para que me amem pelo que sou… Vou sair pra conhecer a Janis Joplin hoje à noite. Mal posso esperar!”
Janis, que foi contemporânea do quadrinista Gilbert Shelton (1940-) – autor do trio de maconheiros Freak Brothers –, na Universidade do Texas, já adorava os quadrinhos underground em geral e a Zap Comix de Crumb em particular.
Nadel conta que os dois se identificaram instantaneamente, ambos com fama repentina e inseguros quanto a serem fisicamente atraentes.
Janis aconselhou Crumb a deixar o cabelo crescer, relaxar para a vida e deixar de usar roupas antiquadas e largadas que pareciam sair do filme As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, 1940), um clássico sobre os miseráveis da Grande Depressão americana dos anos 1930.
O gozado é que tudo em Crumb parecia antiquado. Seu traço era uma releitura irônica dos quadrinhos do começo do século XX. E, musicalmente, seu gosto não podia estar mais longe do rock que ele achava ruidoso, machista e coisa de classe média afetada.
“Ele mal conseguia gostar de algum disco americano gravado depois de 1932 (...). Era da música que Janis fazia antes que ele gostava – por volta de 1964, ‘quando ela cantava country e blues antigos em pequenos clubes. Ela era demais nessa época, uma caipira gritadora à moda antiga’”, escreve Nadel, citando Crumb.
(Material gravado em 1964 por Janis com o guitarrista Jorma Kaukonen, que depois integraria a banda Jefferson Airplane, foi lançado no álbum não-oficial The Legendary Typewriter Tape 1964, em 2022.)
Pouco depois de se conhecerem, Crumb e Janis voltaram a se encontrar na casa de um amigo e ela fez o convite para que ele desenhasse a capa do novo álbum de sua banda, que teria o nome de Sex, Dope & Cheap Thrills (Sexo, drogas e emoções baratas).
Como reforço à proposta, Janis levou duas amigas e prometeu a Crumb que elas fariam qualquer coisa que ele desejasse… O desenhista topou imediatamente fazer capa e contracapa do futuro LP.
O prazo era apertadíssimo, por isso Crumb passou uma noite inteira acordado à base de anfetaminas para fazer as duas artes.
Segundo o autor da biografia, a proposta de capa de Crumb – com fotos dos rostos dos integrantes do Big Brother and the Holding Company colados sobre corpos e cenário desenhados – foi recusada pela gravadora Columbia. Que também censurou o nome sugerido pela banda, encurtando para o mais inofensivo Cheap Thrills.
(Cinicamente, em 2018 a Columbia relançou o álbum com o título que foi censurado em 1968 e com uma capa diferente, trazendo uma foto da banda em vez dos quadrinhos de Robert Crumb.)
Já a suposta contracapa, com 16 quadrinhos que, nos balões, listam as músicas e os músicos do disco, foi promovida pela Columbia a capa do disco.
Quando uma música foi retirada do álbum em cima da hora da prensagem, a solução do departamento de arte da Columbia foi apagar o nome dela da capa e escrever no lugar “Art: R. Crumb”. A contracapa foi resolvida meramente com uma fotografia da banda.
De acordo com o livro, Crumb recebeu 600 dólares (cerca de 5.500 dólares em valores de hoje) pelo trabalho e nunca teve os desenhos originais devolvidos.
Há fontes que juram que Crumb recusou o dinheiro “sujo” da Columbia capitalista. Não é o que diz a consistente biografia de 480 páginas escritas por Dan Nadel.
P.S.: Em 2011, foi lançado o livro R. Crumb: The Complete Record Cover Collection, com todas as capas de álbuns criadas pelo quadrinista.