Ray Davies: autobiografia diferentona
Líder da banda The Kinks criou uma historinha para contar sua própria história
Pode-se dizer que X-Ray: The Unauthorised Autobiography, de Ray Davies (1944-), líder da banda inglesa The Kinks, é uma autobiografia diferentona.
Davies é um dos maiores compositores do rock dos anos 1960, capaz de mesclar agressividade, suavidade, excentricidade, amargor, esperança, sarcasmo e lirismo, além de um olhar atento para a sociedade britânica da época.
De tão original na música, Ray foi incapaz de se contentar em fazer uma autobiografia como todo mundo faz (bom, ele é autor de uma música chamada “I’m Not Like Everybody Else”...).
Para contar sua história desde a infância até cerca de 1973 (talvez não por coincidência, a época em que o auge criativo dos Kinks se encerrou), Ray utilizou o recurso de colocar um narrador que coleta seus “depoimentos”.
Num futuro hipotético, o narrador sem nome pode ser considerado um jornalista que é encarregado por uma orwelliana Corporação de coletar informações sobre Raymond Douglas Davies (o nome de batismo de Ray) para uma série de reportagens sobre roqueiros dos anos 1960.
Escreve “o narrador” no começo de X-Ray:
“Havia três biografias que foram escritas quando Davies ainda se apresentava com seu grupo. Os livros eram cheios de anedotas superficiais e fofocas banais, e, na maior parte, expunham algum preconceito de quem escreveu. Havia pouca informação sobre o homem; ele nunca tinha sido entrevistado diretamente por qualquer dos escritores. Raymond Douglas Davies, como ele preferia ser chamado de acordo com esses livros, era um homem reservado que mantinha sua vida para si. Nada em seu dossiê sugeria que ele algum dia tivesse revelado qualquer coisa ao mundo, exceto sua música. Ele se parecia um pouco comigo, um indivíduo sem rosto”.
Pode parecer confuso para quem não sabe muito sobre ele ou os Kinks. Talvez seja confuso até para quem conhece os Kinks. Mas foi essa opção experimental que Ray escolheu para perpetuar suas memórias.
Ray fala de algumas de suas composições fundamentais e é meio reticente sobre a relação de amor e ódio que tem com o irmão mais novo Dave Davies (1947-), guitarrista solo dos Kinks.
Só que também fala de processos judiciais, frustração no casamento, dinheiro que lhe tiraram e outras preocupações e lembranças pessimistas.
Também joga no texto coisas aleatórias como a apreciação dos seios da cantora americana Eydie Gormé (1928-2013) ou sua torcida pelo tenista americano Arthur Ashe (1943-1993) num jogo pelo Torneio de Wimbledon.
Sem um pouco do humor como o que ele colocava em suas letras, Ray se apresenta como um tiozão amargo. Mas os momentos em que ele fala de composições de suas músicas são deliciosos.
Como a descrição de como nasceu seu clássico mais popular, “You Really Got Me”, que fez sucesso e influenciou muita gente graças ao riff de guitarra distorcida em 1964:
“Eu estava morando na casa da Rosie e do Arthur [irmã e cunhado de Ray] em Highgate, onde a Rosie tinha um velho gravador Grundig, e foi nesse gravador que minhas primeiras tentativas de compor músicas foram registradas. Havia um instrumental chamado ‘So Tired’, um dedilhado Country-Western, que evocava canções das plantações do sul, com imagens de escravos negros trabalhando nos campos de algodão. Havia também uma levada com dois acordes, repetindo a mesma frase várias vezes. Isso acabou sendo minha primeira tentativa de escrever ‘You Really Got Me’.
Depois, de volta à casa dos meus pais, me sentei um dia na sala e comecei a escrever uma música no velho piano vertical. Bati acordes rústicos com a mão esquerda e toques rápidos em colcheias no estilo Little Richard com a direita. Pensei numa melodia para acompanhar a frase que eu tinha criado na casa da Rosie: ‘Yeah, you really got me going, you got me so I don't know what I'm doing.’ Então chamei Dave, que estava jantando com o resto da família na cozinha, e ele pegou a guitarra e ligou no amplificador verde. Começou a tocar junto com o riff que eu estava marcando com a mão esquerda. Quando o amplificador esquentou, ouvi aquele som distorcido maravilhoso. Era uma representação perfeita da minha raiva e, ao mesmo tempo, algo belo.
Enquanto eu ensinava a música para Dave, algumas das nossas irmãs entraram para ouvir. Peg sentou-se no sofá ao lado da filha Jackie, Mamãe ficou parada na porta, meio com medo de que os vizinhos chamassem a polícia de novo. Quando terminamos de tocar a música pela primeira vez, nosso pequeno público aplaudiu. Eu tinha composto ‘You Really Got Me’, e isso aconteceu na sala de estar porque todas as coisas importantes aconteciam ali. Todas as festas de família e cantorias contribuíram de alguma forma misteriosa. Era como se a ideia estivesse no ar.”
Há vários outros detalhes sobre músicas bem conhecidas e obscuras dos Kinks, como a composição de “Sunny Afternoon”, de 1966, após um colapso nervoso. Ou o medo de cantar para o resto da banda e para a própria esposa sua obra-prima “Waterloo Sunset”, de 1967, apenas porque a letra era “pessoal demais” e iriam rir dele.
Em resumo, o deleite de ler X-Ray sempre será proporcional ao nível de interesse e conhecimento da obra dos Kinks e da personalidade de Ray Davies.
Sem dedicatória
Meu exemplar de X-Ray, comprado aqui no Brasil, é assinado por Ray Davies. Um autógrafo genérico. Sem dedicatória. Por culpa minha.
Em 1997, eu viajei de férias para Londres e levei junto meu X-Ray como referência porque queria visitar o distante bairro de Muswell Hill, subúrbio no norte da cidade, onde Ray nasceu, cresceu e formou os Kinks (meu nível de admiração pela banda é tão grande que me levou a fazer isso).
Poucos dias depois de visitar Muswell Hill (dica: NADA há para se fazer ou ver lá, mesmo se você adorar os Kinks), descobri que Ray estaria autografando sua então nova obra de contos Waterloo Sunset numa livraria londrina.
Eu mal podia acreditar na minha sorte. E fui à tal livraria na tarde de autógrafos. Levei meu X-Ray e comprei lá o Waterloo Sunset para que o grande kink assinasse os dois.
Chegou minha vez e estendi os livros para ele assinar. E me faltaram palavras. Eu simplesmente não consegui nem balbuciar meu próprio nome para que, pelo menos, os autógrafos viessem com dedicatória.
Até hoje me pergunto por que nem mesmo “Marcelo” eu consegui pronunciar diante de Ray Davies. Na hora, congelei diante dele. E, por isso, tenho dois livros autografados por ele que poderiam pertencer a qualquer pessoa.
P.S.: Dave Davies, o irmão de Ray, também escreveu sua autobiografia. Por duas vezes…
A primeira foi com Kink: An Autobiography, publicada em 1997. É um livro “normal”, sem os arroubos criativos de X-Ray.
Em 2022, Dave refez seu relato como Living on a Thin Line: The Autobiography.
Para quem quer saber das eternas rusgas entre os irmãos Davies (dignas de deixar no chinelo as dos irmãos Noel e Liam Gallagher, do Oasis), as memórias de Dave são mais informativas.
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P.S. 2: Em 2013, Ray Davies publicou outro livro de memórias, Americana: The Kinks, the Riff, the Road: The Story. Este tem foco em sua adoração pela música dos EUA que teve tanta importância em sua vida e seu trabalho – apesar de muita gente considerar Ray o mais britânico dos roqueiros britânicos…
P.S. 3: Já faz uns anos que leio quase tudo no Kindle. Aí vem a questão: como se autografa um e-book?