Pixies e o biógrafo sarcástico
Livro Gigantic conta a história do início da banda com língua ferina
Gigantic: The Story Of Frank Black and The Pixies é uma curiosa, até bizarra, biografia dos Pixies e de seu líder Black Francis/Frank Black/Charles Kittridge Thompson IV. Tem elogios, fatos e dados corretos. E também tem um monte de críticas sarcásticas ou irônicas que arranham a imagem de uma banda da qual o autor até gosta.
O autor, no caso, é o americano John Mendelssohn (1947-), por isso não deveria surpreender o uso do humor corrosivo no texto.
Mendelssohn (às vezes, você poderá topar também com a grafia Mendelsohn, com apenas um "s") firmou seu nome ainda bem novo ao escrever críticas demolidoras dos dois primeiros LPs do Led Zeppelin na revista Rolling Stone, em março e dezembro de 1969.
Essas duas críticas ajudaram bastante no boicote do Zeppelin à revista. Por anos, a banda se recusou a falar com a Rolling Stone. Contrariado, o dono Jann S. Wenner não via a hora de se livrar de Mendelssohn, o que só ocorreu em 1975.
Mendelssohn brincava que a Rolling Stone temia que ele fosse capaz de escrever uma crítica negativa até sobre Deus.
Atualmente, sua mini-biografia no site da Trouser Press diz que "apesar da fervorosa indiferença, ou até antipatia, dos ouvintes, [Mendelssohn] vem escrevendo [sobre] música por mais de 50 anos".
Toda essa contextualização sobre Mendelssohn é para entender um pouco melhor o que ele cometeu no livro Gigantic, publicado originalmente em 2004 para coincidir com o retorno dos Pixies com a formação original após um hiato iniciado em 1991.
Isso implica que Gigantic está numa defasagem de 20 anos. Afinal, os Pixies acabam de lançar o álbum The Night The Zombies Came, o quinto desde o retorno às gravações em 2014 (numa discografia iniciada com um mini-LP e quatro álbuns completos entre 1987 e 1991).
Capítulos ficcionais
Os 20 anos não relatados em Gigantic nem fazem tanta falta assim. A fase áurea dos Pixies nos anos 1980/1990 está no livro.
Um probleminha é que também estão num livro alguns enigmáticos capítulos batizados de "(Vicky's Story)", um suposto exercício de ficção sobre uma fã dos Pixies.
Mendelssohn não explica em lugar algum a razão de incluir esses capítulos que enchem linguiça.
Quem sabe ele tinha um contrato para escrever uma obra de tantas mil palavras e viu-se sem material factual para isso quando Frank Black recusou-se a colaborar com o livro.
Mas basta pular cada capítulo de Vicky e você terá uma biografia em ordem cronológica.
O autor começa com a infância e adolescência de Charles Kittridge Thompson IV, o futuro Frank Black, nascido em 1965 em Long Beach, California (EUA).
No livro, a fascinação de uma vida inteira de Frank com OVNIs adqurida com "visões" de naves espaciais na infância é creditada a um fator: a família dele morava perto da plataforma de lançamento dos dirigíveis da Goodyear.
Um balão todo iluminado à noite poderia muito bem ser tomado por um OVNI.
Uma das primeiras músicas que conquistaram o futuro líder do Pixies foi a ingênua "Brand New Key", da adocicada cantora folk Melanie.
"Há quem acredite que ["Brand New Key"] é um crime contra a humanidade maior que 'Puff the Magic Dragon', de Peter, Paul & Mary", solta Mendelssohn em sua primeira grande patada no livro.
A descoberta do canto gritado que caracterizou Black Francis/Frank Black merece atenção. Um colega incentivou o garoto a cantar "Oh! Darling", dos Beatles, esgoelando-se como Paul McCartney na gravação original do álbum Abbey Road (1969).
"Cante como se você odiasse aquela puta!", estimulou o amigo, ignorando que "Oh! Darling" era uma canção de amor apaixonada, sem um perdigoto de ódio. E foi assim que o grande rugido das melhores músicas dos Pixies se formou.
Pixies em formação
Charles Thompson IV aprendeu guitarra e passou a compor músicas. Quando chegou à faculdade na Universidade de Massachusetts, em Boston, começou a tocar com um colega filipino-americano, Joey Santiago, também guitarrista.
Os estilos tortos e algo autodidatas dos dois favoreceram à criação de músicas cheias de tempos quebrados e estruturas inesperadas de estrofes e refrãos. Tudo que faria a fama dos Pixies no rock alternativo da segunda metade da década de 1980.
Para a bateria, veio o bostoniano David Lovering. E a vaga de baixista ficou com a única pessoa que respondeu ao célebre anúncio procurando alguém que gostasse de Peter, Paul & Mary e Hüsker Dü (dois grupos absolutamente antagônicos, sonoramente falando): Kim Deal.
Kim sabia tocar violão e guitarra, mas não contrabaixo. A moça, que estava casada com um certo John Murphy (tanto que ela foi creditada como Mrs. John Murphy nos primeiros lançamentos) mas já tinha inoculado o vírus do rock'n'roll lifestyle, respondeu ao anúncio e, incrivelmente, passou no teste.
Os Pixies estavam completos. Com Charles IV adotando o nome artístico de Black Francis.
Mendelssohn se diverte sadicamente ao longo do livro em repreender o estilo quase infantil de Kim ao contrabaixo e seus vocais de apoio rachados e de afinação aflitiva. Mesmo que ele saiba que tudo isso faz parte do charme único dos Pixies.
Problemas com letras e músicas
Mais um fator que desafia a paciência de Mendelssohn: as letras qualquer coisa, que parecem feitas feitas na hora no estúdio com palavras que não fazem sentido juntas.
O autor é impiedoso com o que considera preguiça de Black Francis/Frank Black. Não aceita o desleixo de deixar "Rock Music" sem palavras, apenas com gritos primais.
E, inconformado, espuma de raiva quando o Pixie-mór repete o verso "Jefrey with one 'F', Jefrey" na música "Space (I Believe in)", apenas porque um Jefrey com apenas um "F" apareceu no estúdio.
Mendelssohn parece ignorar a magia do nonsense no rock. Afinal, "Awopbopaloobop alopbamboom" e "Tutti frutti, oh rootie" significam absolutamente nada e mesmo assim ajudaram a transformar "Tutti Frutti", de Little Richard, num dos clássicos mais importantes e duradouros do rock'n'roll.
Na primeira carreira dos Pixies, de 1986 a 1991, o autor gosta de muitas músicas dos álbuns, mas implica fortemente com outras. Ele questiona a qualidade de quase metade do álbum Trompe Le Monde (1991) – para meu gosto, um LP tão forte e ótimo quanto Doolittle (1989).
Quando os excessos e atrasos de Kim Deal levam ao fim dos Pixies em 1991, Black Francis troca seu nome artístico para Frank Black e dá a partida em sua carreira solo. Uma carreira que Mendelssohn parece não levar a sério em momento algum.
Se ele questionava algumas músicas dos Pixies, os álbuns solo de Black são demolidos um por um, com poucas músicas em cada um sendo poupadas ou ganhando elogios de Mendelssohn. Até The Breeders, a banda de Kim Deal, tem mais prestígio com ele, mesmo com fraquezas apontadas.
Com uma carreira paralela de músico, Mendelssohn parece só se comover com a vida e as intenções de Frank Black quando a van de sua banda, lotada de instrumentos e equipamentos, é roubada.
O autor apresenta uma lista completa de tudo que foi roubado com o número de série de cada peça para, quem sabe, ajudar a recuperar tudo algum dia.
Se Mendelssohn é tão venenoso e implicante, por que dedicar tantas linhas a respeito de seu livro? Por que não falar de outra biografia dos Pixies?
Porque Gigantic, bem ou mal, conta a história dos Pixies. As tiradas sarcásticas do autor são divertidas até quando você não concorda com elas. É estilo, não é uma biografia morna que até uma plataforma de IA poderia escrever.
O Gigantic de John Mendelssohn existe para demonstrar que um livro não precisa nem deve seguir um mesmo padrão que outros seguem.
Imagina. Escreva o quanto quiser sempre que quiser. E obrigado por gostar da newsletter
Legal o seu parecer e as dicas de outros livros. E isso de começar no maior gás e depois só enumerar eventos pode acontecer até com bios boas.
Vc me lembrou que preciso tirar a autobiografia do Thurston Moore da fila de leituras.
Abraços