Pauline Kael: crítica sem frescura
Conhecimento e contundência ao falar de filmes fizeram a fama da autora
“Escrevo porque em 1966 eu li Pauline Kael. Uma brochura bem surrada de seu primeiro livro, I Lost It at the Movies (...). Fiquei chocado com o livro: pelo engajamento total de uma escritora com seu assunto, que primeiro podia tomar a forma de um filme e depois expandir, ou talvez criar, todo o mundo social que esse filme deveria abordar, aceitar ou desafiar. Senti que era a escrita mais excitante que eu já havia lido. (...). É uma pergunta que ainda tento responder. Kael escrevia como alguém da plateia, tão ligada nas pessoas à sua volta quanto ao que passava na tela – descobri que era assim que eu queria escrever, era quem eu queria ser.”
(Greil Marcus, crítico musical americano, no livro What Nails It: Why I Write, de 2024)
Não posso alegar que Pauline Kael (1919-2001) me inspirou a escrever porque comecei bem antes de ler qualquer coisa dela. Mas entendo perfeitamente por que Greil Marcus (1945-), um dos críticos de rock que mais admiro, cita como maior influência uma crítica de… cinema, não de música.
Kael tinha um estilo conciso, sem rodeios, possivelmente cruel às vezes quando não gostava de um filme e empolgado quando gostava. Conhecia muito cinema, mas não se deixava levar pelos cacoetes esnobes dos “cinéfilos”.
E ela tentava refletir nos textos o pulso da plateia que sentiu durante uma sessão – ela pagava seu próprio ingresso para não ser cobrada depois por quem fez ou promoveu o filme (algo como “a gente deixou você ver o filme de graça e você fala mal dele?!”). Sempre gostei dessa ideia.
Conhecia a reputação de Pauline como uma das principais críticas de cinema (e, por principais, inclua homens também, poucos com a importância que ela teve) havia algum tempo quando finalmente pude ler um livro dela, lançado no Brasil em 2000: Criando Kane e Outros Ensaios (Raising Kane and Other Essays, 1996 nos EUA).
O coração desta compilação é o ensaio mais famoso e mais polêmico de toda a carreira de Kael, “Criando Kane” (“Raising Kane”), que conta a história de como foi produzido Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles (1915-1985), tantas vezes louvado como o melhor filme de todos os tempos.
É um ensaio gigantesco, com cerca de 50 mil palavras – daria um livro sozinho. Foi publicado simultaneamente em 1971 na revista The New Yorker (na qual Kael escreveu de 1967 a 1991) e no livro The Citizen Kane Book, que trazia “Criando Kane” acompanhado do roteiro original do filme.
No texto, Pauline defende a tese de que o roteiro foi criado unicamente pelo veterano alcoólatra e quase acabado Herman J. Mankiewicz (1897-1953), ao contrário do crédito de co-autor com Welles (isso quando não deram sumiço nele nos créditos). Seja como tenha sido, ambos receberam o Oscar de Melhor Roteiro pelo filme.
Quem assistiu o recente filme Mank (2020) conhece essa parte da história de Mankiewicz.
Assim que o ensaio circulou, Kael passou a ser bombardeada, inclusive por colegas de crítica, pelas inconsistências factuais. Foi acusada de ter comprado a ideia de que Mankiewicz era o único pai do roteiro e que a participação de Welles no script foi quase inexistente (Welles também foi o idealizador, o diretor e o ator principal de Cidadão Kane). Também apontaram que ela não ouviu Welles para o artigo.
Diz-se que Orson Welles ficou furibundo quando leu o ensaio de Pauline. E, a bem da verdade, sua participação no roteiro foi bem mais significativa e incisiva do que "Criando Kane” insinua.
Incrivelmente, ainda há estudiosos de cinema que remexem esse assunto de vez em quando, mais de 50 anos depois. Mas, polêmicas e falhas à parte, “Criando Kane” é uma delícia de ler, cheio de detalhes que nos trazem para mais perto da criação de uma autêntica obra-prima.
E, de qualquer modo, o bafafá sobre “Criando Kane” não afetou a reputação de Pauline Kael como referência de crítica de cinema.
Entre os ensaios presentes no livro, há pelo menos mais um que pode ser chamado de clássico de Pauline: “Bonnie and Clyde”, sobre o filme Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (1967), que marcou a estreia dela na The New Yorker.
Pauline sente no nascedouro o que viria a ser conhecido como “Nova Hollywood”, um jeito mais ousado e sem glamour de fazer cinema que atingiria seu auge nos anos 1970.
(Para saber mais sobre a tal “Nova Hollywood”, não há livro melhor que Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock'n'roll Salvou Hollywood [Easy Riders, Raging Bulls], de Peter Biskind – algum dia falarei sobre esta obra.)
Há alguns anos, tive uma febre de Pauline Kael e li em sequência vários dos livros-compilações dela. Fiz várias anotações de trechos interessantes. Abaixo, reproduzo alguns mais curtos que acho pertinentes ainda hoje.
Sobre seu próprio estilo:
“Fui frequentemente acusada de escrever sobre tudo, menos o filme”.
Sobre técnicas:
“Há algum tempo, os ‘espertos’ vêm dizendo que o futuro dos filmes estava nos comerciais de TV, que era neles que a verdadeira experimentação vinha ocorrendo e onde os verdadeiros talentos estavam trabalhando. E eles não diziam isso de forma cínica: era possível tentar tomadas cheias de truques e cortes rápidos – que pareciam um avanço em relação aos métodos com passos de lesma dos grandes estúdios.
(...)
E então Richard Lester [diretor de dois filmes dos Beatles, entre outros longas] veio demonstrar que os filmes podiam ser feitos como comerciais de TV; não surpreende que ele rapidamente tenha sido aclamado como um gênio do cinema”.
Sobre a auto-estima do público:
“É um simples erro em arte assumir que, se algo mexe com a gente, deve ser uma obra-prima, que não seríamos afetados se não fosse grandioso (é o mesmo erro cometido por quem acha …E o Vento Levou, A Noviça Rebelde e O Homem do Prego grandiosos)”.
Sobre mais do mesmo:
“O sucesso de um filme como A Noviça Rebelde torna ainda mais difícil que alguém tente fazer algo que valha a pena, algo relevante para o mundo moderno, algo inventivo ou expressivo.
(...)
Os bancos, os estúdios, os produtores vão querer dar ao público o que ele parece buscar. Quanto mais dinheiro esses filmes ‘para a família’ fazem, menos saudável será o estado dos filmes americanos. ‘O ópio da plateia', disse o diretor espanhol Luis Buñuel, ‘é o conformismo’. E nada é mais degradante e destrutivo para os artistas que providenciar esse narcótico”.
Sobre o boca a boca:
“Parte da diversão do cinema está em ver ‘sobre o que todo mundo está falando’, e se as pessoas estão indo em bandos ver um filme, ou se a imprensa nos força a pensar que elas estão, vem a sensação de que queremos ir ver também, mesmo com a suspeita de que não iremos gostar, porque queremos saber o que está acontecendo”.
Sobre identificação com um personagem:
“A Primeira Noite de um Homem não é um filme ruim, ele entretém, embora de um jeito bem manhoso (parece que o público foi programado para a hora de rir). O que surpreende é que muita gente o leva a sério. O que é engraçado no filme são as gargalhadas quando aquele rapaz sincero e tonto quer conversar sobre arte na cama quando a mulher quer apenas fornicar. Só que, então, o filme começa a descambar para o narcisismo jovem, glorificando sua inocência e transformando a mulher predatória (e agora maluca) em vilã. Comercialmente, funciona: o rapaz chato e inarticulado torna-se um herói romântico no qual o público projeta todos os sentimentos molengas e hoje costumeiros de ‘Olha! Os pais não se comunicam com ele; Olha! Ele busca a verdade e não uma farsa’ e por aí vai”.
Sobre experiência que vem com o tempo:
“Quando se é jovem, são grandes as chances de que você encontrará algo de que gosta em praticamente qualquer filme. Mas, quando você é mais experiente, essas chances mudam”.
Se você topar com alguma coisa escrita por Pauline Kael na internet, dedique alguns minutos para ler. E pode procurar por outras opiniões dela sobre filmes dos anos 1950 até 1990. Com algum dos textos você vai se identificar, provavelmente.
Valeu! Consegui um exemplar em bom estado na estante virtual por um preço razoável!
Li o Easy Riders, Raging Bulls! Muitas histórias boas. Aguardo o texto sobre ele. Confesso que não conhecia Pauline, mas me interessei bastante.