Os bastidores de Os Bons Companheiros
Livro "Made Men" tem uma riqueza de detalhes sobre um dos melhores filmes sobre Máfia
Goodfellas (Os Bons Companheiros) é um dos filmes que mais vi na vida. Se eu estiver zapeando e ele estiver passando em algum canal, paro (não importa em qual parte esteja) e fico assistindo até o fim. O livro Made Men: The Story of GoodFellas, de Glenn Kenny, foi feito para gente como eu.
Publicado nos EUA em 2020, Made Men conta a história da produção do filme, desde que o diretor Martin Scorsese leu o livro Wiseguy, de Nicholas Pileggi, até a repercussão do longa-metragem que estreou em 1990.
"Goodfellas é frequentemente citado como o filme americano sobre crime organizado mais realista já feito. De certo modo, é. Mas é um grande filme sobre crime organizado porque, entre outras coisas, vai constantemente além do realismo ordinário", escreve Kenny em Made Men.
A origem
Já consagrado por filmes como Taxi Driver e O Touro Indomável (Raging Bull), Scorsese botou as mãos em Wiseguy no começo de 1986, meses após o lançamento do livro.
"Era algo que eu conhecia porque presenciei", disse Scorsese, que nasceu e cresceu no bairro de Little Italy, em Nova York, cheio de figuras mafiosas.
Na obra, o veterano repórter investigativo Nicholas Pileggi (primo de outro consagrado jornalista, Gay Talese) reproduz a história de Henry Hill, um ex-soldado da Máfia em Nova York que vivia sob outra identidade pelo programa de proteção à testemunha.
A vaidade levou Hill a procurar Pileggi para registrar suas confissões mafiosas em livro – as mesmas (ou até mais) que ele contou à justiça americana para se safar de uma queima de arquivo.
Envolvido com tráfico de drogas, Hill já não tinha mais serventia para a Máfia e sabia de muita coisa. Sua delação premiada levou vários de seus ex-companheiros para a prisão.
Pileggi conta em Made Men: "A única razão que me permitiu escrever Wiseguy foi que Henry Hill desafiou o FBI e o Serviço de Delegados ao me dar seu número de telefone, assim pude entrar em contato com ele mesmo estando no programa de proteção à testemunha".
O livro relembra a trajetória de Pileggi no jornalismo e como conseguiu a confiança de mafiosos que lhe renderam boas reportagens graças a suas raízes calabresas.
A reputação deve ter sido determinante para que Henry Hill escolhesse Pileggi para ser seu "confessor" literário.
O "trote"
Quando Martin Scorsese começou a entrar em contato para tentar adquirir os direitos de Wiseguy para o cinema, Pileggi inicialmente não acreditou que os recados para retornar as ligações vinham mesmo do cineasta. Ele passou vários dias pensando que eram trotes de um colega na revista New York.
Pileggi só acreditou que era mesmo Scorsese quando a roteirista e diretora Nora Ephron, amiga dos dois, perguntou por que ele não retornava as ligações do diretor. Finalmente, o jornalista ligou de volta.
"Digamos que fechamos um acordo com um aperto de mãos pelo telefone", brincou Pileggi ao lembrar da primeira conversa com Scorsese.
Scorsese concluiu A Cor do Dinheiro e A Última Tentação de Cristo antes de se concentrar em Wiseguy em 1987.
Ele e Pileggi partiram para o roteiro já com um nome diferente para o filme: Goodfellas. É que, na mesma época, surgiu um seriado de TV com o título Wiseguy (no Brasil, exibido pela Globo como O Homem da Máfia).
Juntos, o diretor e o jornalista decidiram primeiro o que jogar fora das tantas histórias que Hill contou no livro. Cada um releu o livro e montou uma lista do que merecia entrar no filme. Quando foram conferir, ambos tinham feito listas praticamente idênticas.
Os atores principais
Um dos grandes méritos do roteiro de Goodfellas é transformar o personagem Tommy num dos principais da história. No livro Wiseguy, a pessoa correspondente a Tommy é mais periférica, sem tanto destaque.
Fundamental para isso foi a escolha de Joe Pesci para interpretar o intempestivo Tommy. Scorsese foi à casa do ator para convidá-lo.
Pesci já havia trabalhado bem com o diretor em O Touro Indomável, roubando muitas atenções como o irmão do pugilista interpretado por Robert De Niro.
De Niro, o ator mais parceiro de Scorsese, também foi escalado. Mas, desta vez, não como o protagonista. Henry Hill era um personagem jovem demais para um De Niro já quarentão.
"Eu estava no Canadá e li o livro num fim de semana. Sabia que não podia ser o Henry, já estava velho demais. (...) Liguei para o Marty [Scorsese] e falei: 'Sabe, que tal o papel de Jimmy?'", recorda De Niro em Made Men.
E foi fácil assim que o papel do "irlandês" Jimmy "the Gent" Conway ficou com o "italiano" De Niro.
Para viver Henry, Scorsese teve de driblar ideias imbecis, como uma de um alto executivo da Warner Bros. que sugeriu Tom Cruise para o papel – com Madonna vivendo a esposa de Hill. Felizmente, a escolha do diretor foi de Ray Liotta e Lorraine Bracco para esses papeis.
Depois de escolher Liotta para ser Henry, Scorsese ainda enfrentou resistência de seu produtor Irwin Winkler, que não confiava na capacidade do rapaz de tornar críveis os crimes e traições que cometeria na tela.
Liotta se garantiu invadindo a mesa de Winkler num restaurante e defendendo com todo seu carisma que merecia ganhar o papel.
As filmagens
Sobre pré-produção e filmagens, Made Men disseca o método de Robert De Niro para compor seu personagem, incluindo consultas por telefone com Henry Hill e a filha de Jimmy Burke (o mafioso real que é rebatizado de Jimmy Conway no filme).
Além disso, De Niro fez um estudo meticuloso de figurinos e penteados dos anos 1950/60/70 apropriados para um mafioso. E obteve uma cópia do relatório do sistema prisional americano sobre Jimmy Burke.
A primeira cena a ser filmada em 1º de maio de 1989 foi com De Niro e Lorraine Bracco em que Jimmy insiste que Karen Hill, a mulher de Henry, entre em seu depósito de roupas para ver uns vestidos bonitos, já nos anos 1970.
Algumas decisões de Scorsese também merecem atenção. O diretor optou por ser breve na entrada de Henry Hill, ainda adolescente, para o grupo mafioso da região onde morava.
A juventude de Henry rendeu um total de 13 minutos num filme de 145 minutos, mas com duas frases muito marcantes:
"Para mim, ser um gângster era melhor que ser presidente dos Estados Unidos" (Henry, em narração em off);
"Olha aqui pra mim. Nunca delate seus amigos e sempre fique de boca fechada" (de Jimmy para Henry, depois que o adolescente é liberado de sua primeira detenção).
A revelação mais atraente de Made Men é sobre a inesquecível cena em que o Tommy de Joe Pesci passa de contador de piadas para um mafioso ameaçador em fração de segundo numa festinha em uma boate. Foi um improviso do ator que concebeu a cena.
"You think I'm funny? Funny how? Am I a clown?" ("Você acha que sou engraçado? Engraçado como? Eu sou um palhaço?"), dispara Tommy para Henry, como se estivesse pronto para sacar sua arma e transformar o amigo em peneira.
"[Pesci] me falou: 'Deixa eu contar umas histórias. Se você conseguir encaixar essas coisas, acho que podemos criar algo especial'. [...] Depois ensaiamos com Ray e Joe, gravamos o áudio e eu construí a cena a partir das transcrições, então demos para os dois aprimorarem os diferentes níveis de perguntas que mudam de tom. Mas nunca fez parte do script", contou Scorsese à revista americana GQ em declaração reproduzida em Made Men.
Outra cena com curiosidades ótimas é a da participação da mãe do próprio Martin Scorsese que prepara um jantar de espaguete durante a madrugada para o trio Henry, Jimmy e Tommy, que fazem uma parada em casa enquanto tentam se livrar de um cadáver no porta-malas do carro.
Atores e suas carreiras, personagens e mafiosos reais têm suas histórias recontadas. Também há muitas curiosidades sobre cenas (como alguns anacronismos e "licenças poéticas" com cenários) e "causos".
Como a carreira musical nos anos 1960 de Joe Pesci em parceria com Frank Vincent – que interpreta o arrogante Billy Batts em Goodfellas e, anos depois, seria o cruel mafioso Phil Leotardo no seriado The Sopranos.
Outro ator que se destacou em The Sopranos teve um momento marcante em Goodfellas: Michael Imperioli, bem novinho, faz o rapaz que serve bebidas no jogo de pôquer dos mafiosos e cai em desgraça com o impulsivo Tommy.
Em resumo, Made Men tem uma riqueza de detalhes deliciosos. Desde o livro que originou o filme até a noite do Oscar em que Joe Pesci se consagrou com a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante e Scorsese foi mais uma vez derrotado como Melhor Diretor.
Tão prazeroso que é como se o leitor (re)visse o filme em câmera lenta, absorvendo cada minúcia de um dos grandes filmes de Máfia. Ou apenas um dos grandes filmes.
Sensacional! Semana passada fui no aniversário do meu primo e ele me deu um livro no plástico ainda. Era esse Goodfellas, da Darkside. Agora, esse texto. Tô com medo de encontrar um mafioso no jantar.