O poder de um livro sobre Neil Young
Análise crítica de Johnny Rogan me influenciou bastante para escrever
O livro Neil Young: A História Definitiva da Sua Carreira Musical (Neil Young: The Definitive Story Of His Musical Career), do jornalista inglês Johnny Rogan (1953-2021), teve uma influência enorme na minha escrita.
Uma influência que dura até hoje. E, quando parti para escrever meu livro Kurt Cobain: Fragmentos de Uma Autobiografia (Conrad Editora, 2002), essa obra de Rogan foi uma das bases para eu saber que caminho seguir.
(Outra base foi Revolution in the Head, tratado música a música que o também inglês Ian MacDonald escreveu sobre os Beatles.)
Comprei meu Neil Young nos tempos da faculdade, 1987 ou 1988, não lembro exatamente. Era uma edição importada de Portugal, da coleção "Rei Lagarto", publicada pela editora Assírio & Alvim em 1983 (um ano depois do original em inglês).
Naqueles meados de anos 1980, outros livros dessa coleção portuguesa chegaram ao Brasil a preços bem razoáveis.
O que mais se destacou foi Daqui Ninguém Sai Vivo (a principal biografia de Jim Morrison, dos The Doors, que anos depois teria sua edição brasileira), além de coletâneas de letras de David Bowie, Lou Reed e Ian Curtis.
Neil Young é biográfico, mas não é uma biografia. É uma análise crítica em ordem cronológica sobre os discos e músicas do cantor e compositor canadense. Na introdução, Rogan escreveu:
Este livro foi escrito com o propósito de mostrar o desenvolvimento de Neil Young, desde os tempos em que era apenas um miúdo tímido e amante da música, até se tornar um dos artistas rock mais respeitados do mundo. É mais uma apreciação crítica de Young como músico do que um testemunho da sua vida privada. É esta perspectiva que dá unidade ao livro e traça a história musical de Young através de três décadas turbulentas.
Foi o segundo livro de Rogan, depois de uma elogiadíssima biografia do grupo americano de folk-rock The Byrds, publicada em 1980. Muito de seu trabalho de pesquisa de campo nos EUA para o primeiro livro foi reaproveitado em seu estudo sobre Neil Young.
Defasagem?
O autor começa nos anos pré-fama de Young e sua importante participação na banda Buffalo Springfield entre 1966 e 1968. Depois disso, evolui pela carreira solo do artista até o álbum Re-ac-tor (1981) e passa por sua turbulenta passagem pelo supergrupo Crosby, Stills, Nash & Young.
Terminar há quatro décadas enquanto a carreira de Young prosseguiu até hoje poderia indicar que o livro está completamente defasado.
Engano. As análises que estão nas páginas escritas por Rogan seguem atemporais e pertinentes, tanto quanto os álbuns de Young de que ele fala.
Pode não trazer uma visão sobre discos importantes que Young lançou no período 1989-1994 (Freedom, Ragged Glory e Sleeps with Angels, além do duplo ao vivo Arc).
Mas Rogan publicou depois mais obras em que atualizava sua visão sobre a carreira do cantor: The Complete Guide to the Music of Neil Young (1996) e Neil Young: Zero to Sixty - A Critical Biography (2000).
Defasado ou não, é de Neil Young: A História Definitiva da Sua Carreira Musical que trato aqui. O livro que comprei nos meus 20 anos e que me causou uma enorme impressão. O livro que segui consultando a cada novo disco de Young que comprava.
Álbum a álbum
A estrutura básica do volume é de um capítulo para cada álbum, com uma análise geral seguida de outras para cada música, com alguns versos ou estrofes inteiras sendo reproduzidos para Rogan destacar algo que quer ressaltar.
Às vezes, Rogan é breve e escreve apenas um parágrafo sobre uma canção. Em outros momentos, estende-se mais em suas observações se acredita que vale a pena.
Através do trabalho do crítico, é possível perceber a importância de cada persona que Young encarnou em sua carreira: o roqueiro barulhento acompanhado da banda Crazy Horse precisa também fazer álbuns mais limpos e acústicos na carreira solo, além de se encaixar entre as harmonias vocais perfeitinhas do Crosby, Stills, Nash & Young.
Um detalhe me encantou logo na primeira leitura e ainda me lembro de minha reação. Ao falar da canção de violão "The Needle and the Damage Done", do álbum Harvest (1972), Rogan implica com o verso "Every junkie is like a setting sun" ("todo viciado é como um pôr-do-sol").
Ao comparar um junkie (viciado em heroína) ao sol se pondo, Young sugere que algo cheio de vida vai mergulhando na escuridão.
Rogan se recusa a aceitar essa sugestão, protestando que um pôr-do-sol é uma das grandes maravilhas da natureza e não deveria ser comparado a alguém que está destruindo sua vida com drogas.
Lembro-me de pensar que nunca tinha lido alguém discordar frontalmente de uma escolha do artista, colocando em xeque a interpretação de um verso.
Isso é feito não para que o crítico seja o dono da verdade, mas indicando que a imagem que o artista tinha na cabeça pode ter mais de uma interpretação. Adquirir a noção de que isso era possível me marcou.
Exorcismo de demônios
As partes sobre os álbuns Tonight's the Night (gravado em 1973, lançado em 1975), On the Beach (1974) e Rust Never Sleeps (1979) são as mais poderosas do livro.
Graças a Rogan, pude saber que o clima largado e até a desafinação no vocal de Young na música "Mellow My Mind" faziam parte do que o artista queria com Tonight's the Night: algo cru, sem embelezamentos, para exorcizar o demônio da depressão causada pelas mortes de dois amigos próximos por overdose. Arte não precisa ser perfeita.
Marcante também foi a historinha sobre a canção voz & violão "Campaigner", lançada na coletânea tripla Decade em 1977.
Young passou os anos 1970 malhando o presidente Richard Nixon, alvo favorito dos progressistas americanos.
Músicas de On the Beach de certa forma celebravam a desgraça de Nixon com o escândalo de Watergate, que levaria à sua renúncia da presidência em agosto de 1974.
Certo dia, Neil viu na TV Nixon chegando todo tristonho e encolhido ao hospital em que sua esposa estava internada.
Sentiu uma empatia inédita pelo ex-presidente. E compôs "Campaigner", com o refrão "Even Richard Nixon has got soul" ("Até Richard Nixon tem alma").
O eventual parceiro David Crosby, hippie esquerdista mais dogmático que Young, se limitou a comentar: "Neil tem compaixão demais".
Muitas outras passagens escritas por Rogan sobre Young me serviram de referência ou, às vezes, me vêm à cabeça enquanto escrevo. Suponho que mais gente tenha seu próprio livro com esse poder duradouro.
Mais sobre Johnny Rogan
Rogan escreveu mais livros interessantes, como uma biografia de Ray Davies, dos The Kinks.
E Morrissey & Marr: The Severed Alliance (1992) é a melhor biografia dos The Smiths junto a The Smiths: A Light That Never Goes Out (2014), de Tony Fletcher.
Rogan morreu aos 67 anos em 21 de janeiro de 2021 no apartamento em Londres na qual viveu desde criança. Seu corpo só foi encontrado duas semanas depois.
Não tem nada publicado no Brasil do Johnny Rogan?