O poder da Som Livre
Gravadora da Globo foi além das trilhas de novelas e lançou artistas fundamentais
Um lançamento recente me deu vontade imediata de ler. Som Livre: Uma Biografia do Ouvido Brasileiro (Globo Livros), de Hugo Sukman, finalmente conta a história da gravadora que a Rede Globo fundou para lançar as trilhas sonoras de suas novelas e ficar com o dinheiro das vendas em vez de rachar com outro selo.
Com as músicas em destaque nas cenas das novelas numa época em que as tramas televisivas dominavam as atenções do país inteiro, é claro que os LPs das trilhas vendiam muito. Reinaram nas paradas especialmente nos anos 1970 e 1980.
Mas o legal é que, em tempos de maior ousadia artística, a Som Livre também lançou discos de artistas fundamentais da música brasileira, alguns descobertos pela própria gravadora.
A importância dos artistas sobre as trilhas é simbolizada pelos dois primeiros capítulos, que tratam das cantoras Rita Lee, a rainha soberana da Som Livre nos anos 1970 e 1980, e Marília Mendonça, fenômeno do sertanejo do século XXI. Cada uma representa uma fase distinta da gravadora.
"Se Rita Lee representa, como ninguém, a primeira parte da história da Som Livre, ou pelo menos o que foi a gravadora em seus primeiros trinta anos, Marília Mendonça exerceu o mesmo papel nos últimos vinte", escreveu o autor no posfácio.
Apostas e descobertas
Por um lado, a Som Livre botou fé em nomes que estavam sem maior alarde em outras gravadoras. Como Rita Lee, que de expulsa da banda Mutantes viria a se transformar em estrela de primeiro time da música brasileira e teria vários álbuns com recorde de vendas.
Ou os Novos Baianos, que gravaram pelo selo a obra-prima da MPB Acabou Chorare, em 1972.
Ou Luiz Melodia, que lançou seu clássico segundo álbum Maravilhas Contemporâneas em 1976 e ainda teve o empurrão comercial da inclusão de "Juventude Transviada" na trilha da novela Pecado Capital (1975/76) como tema do protagonista Carlão (Francisco Cuoco).
(Vale ressaltar que a trilha de Pecado Capital teve outros dois sucessos estrondosos: a música-título de Paulinho da Viola e "Moça", do cantor Wando)
Mais um que chegou na Som Livre depois de lançamentos que chegaram a nenhum lugar foi Alceu Valença. Ele recebeu três discos de ouro (100 mil cópias vendidas) com seus álbuns na gravadora, lançados entre 1974 e 1977.
O selo global também confiou na carreira solo de Moraes Moreira quando ele deixou os Novos Baianos, que viviam pulando de gravadora em gravadora mesmo tendo feito sucesso na Som Livre.
A partir de 1975, Moraes fez quatro álbuns pela Som Livre, mas só o mega sucesso de "Pombo Correio", de 1977, já teria validado o investimento. Com essa música, Moraes modernizou o estilo de trio elétrico baiano.
Houve também valiosas descobertas, como Djavan e Guilherme Arantes. As histórias sobre como os dois foram "achados" e iniciaram suas carreiras na Som Livre estão entre as melhores do livro.
Outra descoberta foi mais complicada. A banda Barão Vermelho estava com tudo em cima para ser contratada numa época em que o rock brasileiro começava a demonstrar força para ser o gênero comercial dominante dos anos 1980.
Só que a contratação esbarrou num pequeno detalhe: Cazuza, vocalista e letrista do Barão, era filho de ninguém menos que João Araújo, o principal executivo da Som Livre. Araújo não queria a banda do filho em sua gravadora para não ser acusado de favorecimento.
Trilhas especialmente compostas
Inicialmente, Rede Globo e Som Livre insistiram em ter trilhas sonoras especialmente compostas para as novelas. O auge foi conseguir que a dupla Roberto & Erasmo Carlos compusesse todas as músicas para a novela O Bofe, de 1972.
Para ter uma ideia do tamanho da conquista, Roberto Carlos realmente era Rei em 1972, o artista de maior sucesso do país com muitos corpos de vantagem.
E Erasmo ia muito bem, obrigado, em sua carreira solo, depois de ser visto mais como "apenas" o parceiro de RC nos anos 1960.
Já em meados dos anos 1970, a Som Livre começou a organizar suas trilhas com músicas cedidas por outras gravadoras, lançadas simultaneamente.
O que é certo é que uma canção quase sempre tinha mais vendas via trilha sonora que através do lançamento próprio do artista.
O processo de montagem das trilhas sonoras é bem dissecado no livro. É curioso saber como os produtores musicais da Som Livre quebravam a cabeça para descobrir ou encomendar músicas que combinassem com personagens da teledramaturgia da vez.
E os produtores ainda viviam sob risco de levar um esporro de Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho), o todo-poderoso da Rede Globo dos anos 1960 aos 1990, caso ele não gostasse da trilha ou de uma música específica.
Também sob risco estava a qualidade do disco de vinil se a trilha exagerasse no número de músicas.
Lembro de meu LP da trilha sonora internacional de Estúpido Cupido (1976): com dez faixas de cada lado, os sulcos eram tão espremidos que não era raro que a agulha da vitrola começasse a "surfar", pulando trechos das músicas.
Coisas como essa conferem um certo encanto à história contada, com tempos mais heróicos, criativos ou folclóricos.
A partir do fenômeno Xuxa nos anos 1980 e 1990, começa a predominar a atenção ao business. Os números e negociações de executivos ganham mais espaço que a revelação pitoresca de algum artista novo. O triunfo dos sertanejos no cast da gravadora tem foco maior em cifras que em processos criativos.
Mesmo para quem achar menos graça na fase século XXI da Som Livre, o livro merece a leitura, no mínimo para relembrar ou conhecer o que foi a "Era das Novelas".