O pai da Vale Tudo original
Biografia de Gilberto Braga relembra como foi feita a versão clássica da novela
Por causa de todo o bafafá sobre o remake — odiado por muitos, amado por alguém — da novela Vale Tudo, atualmente em exibição na Globo, resolvi tirar da fila de leituras Gilberto Braga: O Balzac da Globo, biografia do novelista Gilberto Braga (1945-2021) publicada em 2024.
Gilberto foi autor da versão original de Vale Tudo, exibida em 1988/89 na mesma Globo, onde ele passou toda a sua carreira de criador de novelas e escreveu clássicos do gênero como a adaptação de Escrava Isaura (1976), Dancin’ Days (1978), Celebridade (2003) e Paraíso Tropical (2007), além das minisséries Anos Dourados (1986) e Anos Rebeldes (1992).
O livro tem dupla autoria. O jornalista Mauricio Stycer (1961-) completou a apuração e redação do texto depois da morte do colega Artur Xexéo (1951-2021). Na capa, o nome de Xexéo vem antes do de Stycer.
Xexéo passou anos pesquisando e entrevistando o próprio Gilberto (que morreu meses depois de Xexéo, impedindo Stycer de realizar entrevistas complementares com ele).
A obra é bem competente em contar a vida do novelista desde sua infância (e as muitas confusões e tragédias em sua família), passando por seu amor pelo cinema clássico de Hollywood e pela carreira breve de crĩtico de teatro do jornal O Globo assinando como Gilberto Tumscitz (seu nome de certidão de nascimento; o Braga vem da família da mãe).
Finalmente a história chega a sua entrada na TV escrevendo o roteiro de um Caso Especial da Globo em 1972. Daí em diante, cada capítulo se dedica a uma das criações de Braga e sua ascensão como um dos principais autores de novelas da maior emissora do país.
Como o processo criativo de cada novela é bem explicado, desde a ideia original até o trabalho em parceria com colaboradores (algo que Gilberto praticamente implantou na Globo quando percebeu que o esforço para escrever uma novela sozinho/a era sobrehumano), é muito interessante o capítulo sobre a histórica Vale Tudo original.
Início de uma trilogia
Vale Tudo foi o ponto de partida para uma trilogia de novelas “das oito” (hoje “das nove”) questionando os rumos da sociedade brasileira, embora Braga não tenha dado muita trela ao agrupamento temático de três de suas obras.
Em Vale Tudo, a pergunta central era: “Vale a pena ser honesto num país onde todo mundo é desonesto?”.
Na sequência, Braga fez O Dono do Mundo (1991), onde a questão era: “Vale a pena ser ético num país onde ninguém respeita a ética?”.
A trilogia se completou com Pátria Minha (1994), que perguntava: “Vale a pena continuar no Brasil?”.
As duas novelas posteriores da trilogia nem chegaram perto da audiência e repercussão de Vale Tudo.
De certa forma, a trama de 1988 se destacou por exibir as falhas de caráter de certos tipos brasileiros de uma forma realista, sem exageros de melodrama. O público não estava acostumado a isso, mas aprovou com louvor.
Gilberto foi escalado em meados de 1987 para escrever a trama da novela das oito que estrearia em maio de 1988.
Além de seus colaboradores costumeiros na época, ele pediu à Globo – e foi atendido – para ter Aguinaldo Silva (1944-), já um autor de novelas consolidado, como assistente direto. Gilberto e Aguinaldo foram contemporâneos como jornalistas de O Globo na década de 1970.
Aquela pergunta central para desenvolver Vale Tudo surgiu para Gilberto num almoço de família. O livro conta:
O ponto de partida de Vale Tudo, como é amplamente sabido, foi uma conversa num almoço familiar. A certa altura, Ronaldo, irmão mais novo de Gilberto, fez um comentário sobre o tio Darcy Braga (...), que havia feito carreira na Polícia Federal. Darcy não estava presente ao almoço. “Um delegado da PF que passa seis meses em Foz do Iguaçu volta milionário. Mas era tão honesto… Nunca trouxe uma garrafa de uísque”, disse Ronaldo.
O irmão de Gilberto observou, ainda, que Darcy não parava em lugar nenhum porque não entrava no “esquema”. Cansado, pediu para sair da PF. “Tio Darcy podia estar rico”, repetiu Ronaldo. Foi quando Gilberto teve o estalo: “Você acha que alguém não pode ser honesto e ganhar dinheiro? Não vale a pena ser honesto no Brasil?”
Escalação para personagens
Outra inspiração de Braga foi o filme Alma em Suplício (Mildred Pierce, 1945), que trazia um conflito entre mãe e filha semelhante ao das personagens Raquel, superhonesta, e Maria de Fátima, inescrupulosa.
A suposta heroína Raquel foi interpretada por Regina Duarte (1947-). Braga chamou a atriz para um dos papeis principais, com o direito de escolher se queria ser a boa ou a malvada.
Regina optou por fazer Raquel, mãe da golpista Maria de Fátima, papel que ficou com a jovem Glória Pires (1963-).
“Depois (…), ela [Regina] se arrependeu. Deveria ter escolhido fazer a má. Ninguém gostava da Raquel. Era chata mesmo”, revelou Gilberto depois.
A hipervilã sessentona Odete Roitman caiu nas mãos de Beatriz Segall (1926-2018), cheia de talento para fazer uma mulher muito rica e refinada, mas cheia de preconceitos e falta de caráter.
A trama também tocava em dois problemas: alcoolismo, através da personagem Heleninha Roitman, feita por Renata Sorrah (1947-); e o direito de herança de casais homossexuais, debatido através do casal Cecília e Laís.
Outro destaque foi o empresário sem qualquer caráter Marco Aurélio, que ficou com o ator Reginaldo Faria (1937-). A cena do último capítulo em que ele foge do Brasil com seus dólares e, da janela do jatinho, dá uma “banana” para o país do qual fugia virou um clássico.
No livro, Reginaldo diz que “Fazer um personagem fascista numa história em que você acusa o fascismo é enriquecedor para o ator porque ele está passando uma mensagem política”.
Mas Reginaldo se surpreendeu com a aprovação de muitos espectadores (“gente do mercado financeiro”, de acordo com o livro) ao gesto malcriado de Marco Aurélio.
“Quem matou Odete Roitman?”
Marco Aurélio também estaria envolvido na grande pergunta que entrou para a história da teledramaturgia brasileira: “Quem matou Odete Roitman?”
O assassinato de Odete ocorreu num capítulo exibido na véspera do Natal de 1988, a duas semanas do fim da novela. O mistério dominou o Brasil.
A ideia original era de que Marco Aurélio, seu ex-genro e alto executivo da empresa da megera, seria o assassino.
Não foi. Por duas semanas, o segredo de quem matou Odete foi guardado a várias chaves na Globo.
Além de Braga, só mais três pessoas (Boni, o grande chefe da TV Globo; Daniel Filho, o executivo de teledramaturgia; e Dennis Carvalho, o diretor da novela) sabiam de quem seria a culpa.
A cena que revela quem foi só foi gravada no mesmo dia da exibição do último capítulo – 6 de janeiro de 1989 – para não vazar para a imprensa (não havia nem internet, quanto mais redes sociais para estragar a surpresa).
A definição de quem tinha cometido o assassinato por parte de Gilberto rendeu uma conversa curiosa entre Gilberto e Dennis:
“Três dias antes, liguei para o Gilberto. Quem é o assassino? Você já mudou de novo?”, perguntou o diretor.
“Dennis, quem é a mulher que tem a cara de mais louca do elenco?”, respondeu Gilberto.
“Falei: Cássia Kis.” E ele: “Acertou!”
Cássia Kis (1958-), hoje uma ultraconservadora de direita, fez a personagem Leila, que supostamente matou Odete por engano, pois seu alvo seria sua rival Maria de Fátima.
Consta no livro que a atriz gostou de ter sido escolhida como a assassina.
PS: Não acompanhei a Vale Tudo original porque fazia faculdade à noite. Mas depõe muito sobre o sucesso que a novela teve o fato de que, mesmo sem assistir, de alguma forma ficava-se sabendo sobre tudo que acontecia na trama. Realmente impressionante.
Li o livro sobre Anos Rebeldes há anos e fiquei apaixonada pelo Gilberto Braga. Lerei com certeza!
Muito legal saber de tudo isso sobre a novela, Marcelo. Alguém, no entanto, correu a cena! Que figuraça o ex-delegado Darcy Braga. Honesto à toda prova. Precisa mesmo ser lembrado!