Meus vira-latas do rock favoritos
The Replacements exageraram na auto-sabotagem em sua carreira
Há muitas histórias de triunfos na música pop. Os gigantes merecem dezenas de livros dissecando suas trajetórias de sucesso, períodos de crise, muitas vezes problemas com vícios e a exaltação de suas recuperações, quando elas ocorrem. Também há milhares de fracassos absolutos que mal chegam aos livros.
E há os que tinham potencial para ser grandes e não conseguiram. Como a banda alternativa The Replacements, que teve sua melhor fase nos anos 1980.
Sua história tortuosa foi bem contada no livro Trouble Boys: The True Story of the Replacements, do jornalista americano Bob Mehr, publicado originalmente em 2016.
Os Replacements tinham um cantor-compositor-guitarrista talentosíssimo (Paul Westerberg), um som vigoroso herdeiro do punk, senso de humor para citar ou fazer covers de Beatles e Bob Dylan, ou de um tema da antiga série de TV Dragnet e uma canção do desenho animado da Disney 101 Dálmatas, prestando tributo sem ser reverente demais.
Mas não alcançou uma certa "primeira divisão" por sua própria culpa. A rebeldia que era motor da banda se traduziu em inúmeras auto-sabotagens; o consumo de álcool (principalmente) afetou vários shows e a própria carreira; chances de estrelato foram jogadas pela janela.
E, em poucos anos, os Replacements viram colegas contemporâneos como R.E.M. e Hüsker Dü, depois fãs e herdeiros espirituais como Pixies, Nirvana e Wilco – que talvez tenham jogado melhor o jogo, tanto no rock de grande público como no alternativo – se tornarem muito maiores do que eles próprios jamais foram.
Os Replacements acabaram como os vira-latas que são um segredo bem guardado pelos fanáticos, bem como uma das referências da própria banda, o grupo Big Star dos anos 1970.
Um retrato simbólico do vira-latismo dos Replacements é a capa de seu último álbum, All Shook Down, de 1991, com uma foto em sépia de dois cachorros de rua molhados de chuva, meio coitadinhos e meio invocados, numa rua americana qualquer.
A capa não foi acidental. Paul Westerberg fuçou em portfólios de fotógrafos de arte em busca de uma imagem que simboliza o espírito do disco de despedida. Topou com um registro de Michael Wilson, que captou os dois cachorrinhos num domingo de 1979 em Newport.
“É esta!”, determinou Westerberg ao ver a foto, segundo o livro. “Os cães parecem já ter visto de tudo e um pouco desiludidos. Podem ser vira-latas, podem estar perdidos, mas nem tente domesticá-los porque você pode perder um braço”.
Impulso punk
Os Replacements se formaram em Minneapolis numa operação quase familiar. Naquele processo costumeiro de rapazes que gostam de rock e sabem tocar alguma coisa se unindo a outros iguais, Westerberg se juntou ao guitarrista Bob Stinson e seu irmão caçula Tommy Stinson, que assumiu o baixo com apenas 14 anos. O baterista Chris Mars completou o quarteto.
Se eles cresceram absorvendo o que hoje se chama de rock clássico dos anos 1960 e 1970, a criação da banda coincidiu com a influência do punk, com a liberação de sandices, comportamentos ultrajantes e a tolerância da tosquice na competência musical.
Os Replacements não eram toscos com seus instrumentos, como provaram depois. Mas embarcaram nessa onda.
Os shows beiravam o caos. Cervejas consumidas no palco, alguém usando um vestido (quase sempre Bob Stinson, antecedendo Kurt Cobain em alguns anos), tumultos e problemas.

Mas os primeiros álbuns pela Twin/Tone, pequena gravadora independente de Minneapolis, apresentaram evolução sonora a cada novo lançamento.
Westerberg foi refinando seu dom de compositor com letras espertas mas passou do urro revoltado punk para melodias rock bem construídas.
Ascensão em queda
Com o LP Let It Be (ironia inclusa), de 1984, chamaram a atenção de muita gente da indústria fonográfica e viraram queridinhos do público universitário americano (o dito “college rock”, bem influente na época).
Conseguiram até uma participação especial na guitarra do amigo Peter Buck, do R.E.M., que já desfrutava de um status mais alto.
O prestígio alcançado no meio alternativo levou a um contrato com a gravadora Sire, subsidiária “cult” da Warner que também contava com Ramones e Talking Heads em seu elenco.
A noção de que estava ascendendo ao andar de cima acionou a capacidade de auto-sabotagem dos Replacements com toda força.
Inicialmente, eles queriam se recusar a fazer videoclipes, bem numa época em que a MTV reinava e o formato ajudou artistas como o A-Ha a se tornarem astros graças a vídeos muito bem feitos.
Forçada a se render, a banda fez uma obra-prima de conceito, mas um péssimo atrativo para o telespectador: todo o clipe de “Bastards of Young”, do álbum Tim (1985), se resumia a uma câmera fixa num alto-falante de um aparelho de som dos anos 1980 supostamente tocando a música e sendo ouvido por um adolescente.
A única ação de verdade acontece no fim do vídeo, quando o pé do adolescente chuta o alto-falante.
Para potencializar o salto no abismo da banda, uma participação no programa Saturday Night Live no começo de 1986 foi coroada por Westerberg berrando “Come on, fucker” para a entrada do solo de guitarra.
Um palavrão. Ao vivo em rede nacional de TV. Desnecessário dizer o quanto isso prejudicou o grupo com a grande mídia.
Quando voltou ao programa como artista-solo anos depois, Westerberg ficou torcendo muito para que ninguém da produção se lembrasse que ele era o boca-suja dos Replacements.
No fim do programa ao vivo, enquanto os créditos rolavam, o todo-poderoso chefe do Saturday Night Live, Lorne Michaels, se aproximou de Westerberg com um olhar meio sisudo, lembrando do ocorrido anos antes, segundo conta Mehr no livro.
Westerberg relembrou: “Eu falei para ele, ‘Viu, eu não fiz nada de errado. Não xinguei’. E ele bateu no meu ombro e disse ‘Você amadureceu, você aprendeu’. Acho que sim. Mas com certeza não foi tão divertido quanto na outra vez”.
Adeus, Bob
Essa fase culminou com a expulsão de Bob Stinson. Se todos do quarteto exageravam na cerveja e, eventualmente, outros aditivos, o guitarrista multiplicou tudo isso a níveis em que praticamente não funcionava mais.
Bob é a história trágica dos Replacements. Depois de sua saída, vagou como um fantasma e sua decadência precoce foi retratada numa matéria comovente publicada pela revista americana Spin em 1993, citada no livro.
Ele morreu em 1995, aos 35 anos, por falência de órgãos devido ao uso pesado e contínuo de drogas.
Sem Bob, os Replacements foram um power trio por um álbum, o ótimo Pleased to Meet Me, de 1987, muito mais pesado e roqueiro que o anterior Tim.
Uma certa inveja do sucesso dos colegas do R.E.M. levou os Replacements a tentarem algo mais suave no equivocado álbum Don’t Tell a Soul, de 1989.
Um novo segundo guitarrista foi acrescentado oficialmente: Slim Dunlap, um músico profissional veterano de Minneapolis, bem mais velho que os outros integrantes.
O som suave do álbum não chega a lugar algum, sem o apelo e a energia dos momentos mais roqueiros do grupo.
Avacalhando Dylan na sala ao lado
Os problemas de relacionamento entre os membros e a revisão de Westerberg sobre seu modo de vida, decidido a partir para a sobriedade como forma de sobrevivência, fizeram com que o álbum All Shook Down fosse gravado com a noção de que era a despedida da banda.
Um disco de rock comercial, distante da explosão dos primeiros tempos mas mais intenso e bem feito que o anterior. E capaz de momentos tocantes em duas baladas reflexivas, “Sadly Beautiful” (composta para Marianne Faithfull) e o hino pró-sobriedade “The Last”.
Mesmo nesse solene fim, a molecagem não poderia deixar de acontecer. Durante as gravações, eles sabiam que Bob Dylan estava fazendo um novo álbum na sala ao lado do estúdio.
Por pura travessura, os Replacements tocaram uma versão avacalhada de “Like a Rolling Stone”, rebatizada de “Like a Rolling Pin”.
Westerberg foi à sala de controle e deu de cara com Dylan. Envergonhado, disse: “Meu Deus, cara, me desculpe”.
A resposta de Bob: “Nem liga. Foi cool – parecia o Hendrix”.
Westerberg prosseguiu como artista-solo discreto e com trabalhos muito bem feitos. Tommy Stinson chegou a ser baixista do Guns N’ Roses.
Os dois são o núcleo de memória dos Replacements. Tanto nas reuniões da banda que aconteceram com algumas faixas novas em coletâneas como nos relançamentos.
Mas a sensação de que os Replacements poderiam ter sido maiores do que foram persiste.
Este texto é uma versão revisada, editada, modificada e atualizada do publicado em meu blog anterior Século Pop em 2020.