MC5: barulho e política
História oral da banda sai no mesmo ano em que seus últimos remanescentes morreram
Em 2024, morreram os dois últimos remanescentes do MC5 (o guitarrista Wayne Kramer e o baterista Dennis Thompson) e seu ex-empresário John Sinclair.
O grupo pioneiro em misturar rock pesado com política radical também conseguiu entrar para o Rock and Roll Hall of Fame após seis votações frustradas e, sob a batuta de Kramer, lançou um disco de músicas inéditas após 53 anos, Heavy Lifting.
E finalmente, em outubro, foi publicado o livro MC5- An Oral Biography of Rock's Most Revolutionary Band.
A palavra "finalmente” não é gratuita neste caso. O início desse livro se deu em 1990, quando o crítico Ben Edmonds (1950-2016) – que foi editor da histórica revista Creem, de Detroit – começou a coletar depoimentos dos ex-membros do MC5 e de pessoas próximas ao quinteto.
Ele ainda teve tempo de conversar com o vocalista Rob Tyner (1944-1991), primeiro da banda a morrer. Já o guitarrista Fred "Sonic” Smith (1948-1994), que normalmente era impenetravelmente silencioso, está praticamente sem a própria voz no livro.
O baixista Michael Davis (1943-2012) falou bastante, assim como os já citados Wayne Kramer (1948-2024) e Dennis Thompson (1948-2024).
As figuras de entorno mais presentes na obra são o ex-empresário John Sinclair (1941-2024), o divulgador Danny Fields e Ron Asheton (1948-2009), guitarrista da banda-irmã The Stooges.
Na década passada, Edmonds estava combalido por um câncer de pâncreas quando pediu a Brad Tolinski (então editor da revista Guitar World e autor do livro Luz e Sombra: Conversas com Jimmy Page, de 2012 ) que concluísse o livro por ele.
Após a morte de Edmonds em 2016, Tolinski partiu para a missão com a ajuda de Jaan Uhelszki. Além de acréscimos à apuração, a dupla teve de lidar com o exaustivo arquivo deixado pelo colega. Por isso, a autoria é creditada aos três.
Analógico, Edmonds tinha todas as suas enormes entrevistas com a turma do MC5 transcritas à mão em cadernos.
Tolinski e Uhelszki tiveram de processar a digitalização de todo esse material para começar a organizar o livro em narrativa cronológica.
Barulho e política
O livro reconstitui a história do MC5 desde a formação embrionária iniciada na adolescência pelos guitarristas e amigos Wayne Kramer e Fred Smith – com o primeiro ensinando o outro a tocar em Lincoln Park, na região metropolitana de Detroit.
Aos poucos, foram sendo agregados os outros. Rob Tyner tentou ser baixista e empresário antes de assumir o papel de vocalista. Nesses primeiros tempos, a banda se chamava The Bounty Hunters.
Meio pirado, Tyner traria uma influência de free jazz que a banda adicionaria para temperar suas bases de blues e rock, especialmente Rolling Stones.
Seria ele também quem rebatizou o grupo como MC5 (sigla para Motor City 5, referência ao fato de Detroit ser a capital automotiva dos EUA, concentrando todas as grandes montadoras).
Uma história curiosa é que, inicialmente, a banda tinha uma cozinha de baixo e bateria de músicos bem competentes. Os ex-membros admitem em suas declarações que Michael Davis e Dennis Thompson eram tecnicamente inferiores, mas entraram em 1964 e 1965 porque contribuíam mais visualmente e na atitude.
O MC5 foi desenvolvendo um rock de garagem altamente ruidoso, com amplificadores a todo volume. Gravaram em 1967 um primeiro compacto com uma cover de “I Can Only Give You Everything", da banda norte-irlandesa Them.
(Apenas como curiosidade, o tema de guitarra dessa música foi sampleada pelo cantor Beck em sua clássica faixa "Devil's Haircut")
Em 1968, fizeram outro compacto que tinha “Looking at You” e "Borderline". Nos shows, arrebentavam tudo com uma livre sinfonia de barulho batizada de "Black to Comm".
Uma grande virada na trajetória do MC5 veio quando passaram a ter como empresário o carismático John Sinclair, um agitador cultural hippie de esquerda radical que acumulava detenções por posse de maconha.
"Nós achamos que Sinclair iria se tornar o Rei dos Hippies, então se o Rei dos Hippies fosse nosso empresário, todos os hippies iriam gostar da gente", explicou Wayne Kramer.
Mais que atrair o cada vez maior público hippie, Sinclair incutiu no MC5 sua agenda política. O MC5 passou a ser um grupo de protesto radical, defensor da liberação da maconha e começou a viver comunitariamente na mesma casa.
O quinteto também embarcou no "partido” criado por Sinclair, os White Panthers, “irmãos” de luta dos mais memoráveis Black Panthers, negros esquerdistas radicais que lutavam contra o racismo nos EUA.
LP de estreia ao vivo
Foi Sinclair quem trançou os pauzinhos para colocar o MC5 para tocar na manifestação popular diante da convenção do Partido Democrata em Chicago, em agosto de 1968.
Na época, com a Guerra do Vietnã matando cada vez mais os jovens soldados americanos que não conseguiram se safar da convocação, o Partido Democrata estava no poder com o presidente Lyndon Johnson.
Por isso, o Partido Democrata era visto então como mais merecedor de protestos que o conservador Partido Republicano.
Johnson não iria concorrer à reeleição. Mas hippies e esquerdistas acreditavam que a pressão faria com que os Democratas escolhessem um candidato à presidência que acabasse com a guerra.
A parte de shows nos protestos foi batizada como Festival of Life. Na tarde de domingo, 25 de agosto, o MC5 foi a banda que teve coragem de ir ao palco improvisado para abrir o festival – e acabaria sendo essa a única apresentação nos protestos.
Logo após o show do MC5, o pau começou a comer com um conflito aberto entre a famigerada polícia de Chicago e os manifestantes até então pacíficos. Um dos maiores tumultos políticos da história dos EUA.
O MC5 conseguiu escapar com seu equipamento antes de toda a porradaria.
Pouco depois, ainda com os ânimos agitados nos EUA, o escritor Norman Mailer, então no auge de sua fama e prestígio, escreveu sobre os acontecimentos de Chicago e reservou uma parte para tecer louvores ao MC5.
“O som do choque entre montanhas (...) um crescendo elétrico gritando como se vivesse um clímax eletromecânico de nossa era", escreveu Mailer.
Não se sabe se alguém na gravadora Elektra entendeu direito, mas tal pessoa foi convencida o bastante pelas palavras de Mailer para oferecer um contrato ao MC5.
Para captar o poder explosivo do MC5 no palco, foi decidido que o álbum de estreia seria gravado ao vivo no histórico Grande Ballroom, em Detroit, no fim de outubro de 1968.
Wayne Kramer lembra que não gostou muito da ideia por não confiar que as gravações seriam decentes para sair em disco. A gravadora jurou para ele que outros shows seriam gravados e apenas o melhor do melhor iria para o álbum, chamado Kick Out the Jams.
"A gravação chegou e disseram: ‘Não, não vamos usar essa'. E então, surpresa!, aquilo virou o disco", recordou Kramer, que não considerava as duas apresentações usadas no LP representativas do MC5 ao vivo.
Lei de Murphy
Se tudo tinha dado certo até então, o álbum parece ter acionado de forma irreversível a Lei de Murphy ("Tudo que pode dar errado vai dar errado") para o MC5.
Primeiro, havia a faixa-título do LP. Antes de o MC5 começar a tocar "Kick Out the Jams", o mestre de cerimônias do show anuncia aos berros: "Kick out the jams, motherfuckers!” (em tradução livre, "soltem o esporro, filhos da puta!").
A gravadora Elektra quis uma versão limpa para lançar em compacto e "motherfuckers!” foi substituída por "brothers and sisters". A versão com palavrão ficaria só no LP.
O problema é que, contrariando o plano inicial de esperar para soltar o álbum uns dois ou três meses depois para que o compacto explicasse nas rádios e vendesse bem, a Elektra já mandou o LP boca-suja para as lojas praticamente junto com o disquinho.
Lojas de todos os EUA se recusaram a vender o LP e, por tabela, o compacto com a versão sem palavrão. Resultado: vendas que prometiam não aconteceram. E, com tanta polêmica na mídia, a Elektra preferiu demitir a banda.
Ainda haveria mais em 1969. John Sinclair recusou um convite para o MC5 participar do Festival de Woodstock, dizendo que os outros artistas eram "muito mainstream".
O MC5 teve a sorte de fechar outro contrato com a gravadora Atlantic. E o grupo começou a achar que estava sendo muito usado de marionete por Sinclair. O empresário se desligou da banda antes de ir preso, condenado por suposto tráfico de maconha.
Na Atlantic, o MC5 fez em 1970 seu primeiro álbum de estúdio, Back in the USA. Mas o produtor Jon Landau (crítico de música e futuro empresário e produtor de Bruce Springsteen) quis uma gravação profissional, mais disciplinada, com volume controlado.
E sem política – isso é o que a banda mais queria naquele momento.
O resultado foi um álbum mais comercial e leve, que desagradou membros da banda e não vendeu. Apesar de ter seus defensores, Back in the USA traz um MC5 castrado.
Se nos tempos de ascensão os músicos do MC5 eram adeptos de maconha e LSD, o mergulho deles em heroína começou a destruir as relações interpessoais. Lembrando que todos moravam na mesma casa.
Em 1971, houve em Detroit um festival improvisado para defender a libertação de John Sinclair. O evento contou com a participação de ninguém menos que John Lennon e Yoko Ono.
Era a fase mais panfletária e esquerdista do ex-beatle Lennon. Ele até compôs e cantou no festival a música "John Sinclair", que sairia em disco em 1972.
Pois o MC5, banda de Detroit e que teve Sinclair como seu empresário e mentor político, não foi chamado para o festival. Muito pela presença de Lennon para atrair atenção da mídia, Sinclair acabou solto dias depois.
O declínio do MC5 só se acentuou. Ninguém tomou conhecimento do terceiro LP, High Time. E as aventuras da banda pela Europa foram sem dois integrantes que se recusaram a viajar com os colegas.
Apesar de vários infortúnios, o MC5 conseguiu fazer um show de despedida em 31 de dezembro de 1972 com toda a formação original no Grande Ballroom de Detroit. Daí em diante, seria apenas uma banda que deixou um legado.
O legado
"Nunca fomos uma banda de sucesso e nunca fizemos dinheiro", disse Wayne Kramer nos últimos anos de vida. "Mas nosso trabalho resistiu ao teste do tempo e as pessoas ainda gostam do que fizemos".
Ele tem razão no que disse. A influência do MC5 já começou a se manifestar – musical e politicamente – nos punks dos anos 1970.
Na introdução do livro, são relacionados como influenciados Ramones, The Dictators, Blondie e Patti Smith (que foi além e se casou com Fred "Sonic” Smith, união que durou até a morte dele). “O MC5 realmente acreditava que podia mudar o mundo", disse Patti.
Na Inglaterra, The Clash nunca poderia negar a herança que recebeu do MC5. "Nós queríamos ser como eles, usando nossa música como uma voz bem alta de protesto. Punk rock tem de ser música de protesto”, falou o vocalista e guitarrista Joe Strummer.
Mais associado ao heavy metal, o Motörhead absorveu todo o peso e distorção de Kick Out the Jams. O Soundgarden levou a influência sonora para dentro do grunge de Seattle. E o Rage Against the Machine foi quase uma reencarnação do MC5.
Até o White Stripes com sua simples combinação de uma guitarra e bateria se arriscou a fazer cover de MC5 e prestar tributo aos conterrâneos de Detroit.
Quando o MC5 foi anunciado como novo integrante do Rock and Roll Hall of Fame, Wayne Kramer tinha acabado de morrer.
Dennis Thompson ainda estava vivo (não sobreviveria para comparecer à cerimônia) e disse o que todo fã da banda pensava: “Estava mais que na hora dessa porra".