Jô Soares, comediante
Se era ótimo como entrevistador, também foi gigante do humor brasileiro
Quando Jô Soares (1938-2022) morreu aos 84 anos, houve uma torrente de merecidos tributos na mídia e nas redes sociais. Só que predominaram as lembranças do entrevistador de fim de noite, persona que ele assumiu em 1988 com o programa Jô Soares Onze e Meia no SBT e que teve continuidade com o Programa do Jô na Globo, de 2000 a 2016.
Homenagens com toda justiça. Jô Soares foi um ótimo apresentador de talk-show, misturando humor, seriedade e conhecimento num mesmo bate-papo com desenvoltura. E não importava se fosse uma pessoa muito famosa ou pouco conhecida. O método valia para todos.
Mas o Jô dos talk-shows ofusca o Jô humorista, sua encarnação anterior e igualmente bem sucedida nas décadas de 1970 e 1980. Sem exagero: Jô Soares foi um mestre da comédia.
Jô esmiuçou tudo que fez nas saborosas duas partes de sua autobiografia, O Livro de Jô: Uma Autobiografia Desautorizada, Volume 1 (2017) e Volume 2 (2018), escrita em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr. – a leitura é altamente recomendada.
O despertar para o humor televisivo veio numa viagem com os pais a Nova York em 1951, quando o carioca José Eugênio Soares tinha 13 anos.
Ele descobriu que a TV já era algo muito popular nos EUA (no Brasil, ainda engatinhava desde setembro do ano anterior e só a elite via) e que seu maior sucesso era I Love Lucy, o primeiro grande sitcom (aglutinação em inglês para “comédia de situação”) com a comediante Lucille Ball.
Bem jovem, Jô foi se enfiando no mundo artístico do Rio. Começou a fazer uns trabalhinhos na TV Rio (hoje extinta) e, aos 19 anos, lançou-se como humorista na noite carioca.
A primeira notícia de jornal sobre ele cravou que seu nome era Joe Soares. Essa variação voltou a aparecer no pôster do filme O Homem do Sputnik, de 1959, estrelado pelo cômico Oscarito.
Nesse período, Jô fazia pontas ou papéis secundários em filmes, além de teledramas e programas humorísticos da televisão.
Como não tinha contrato de exclusividade com a TV Rio, Jô aparecia também em programas da Tupi e da TV Continental (igualmente extintas atualmente).
Na entrada dos anos 1960, mudou-se para São Paulo para trabalhar na TV Record (a histórica, hoje extinta em tudo, menos no nome). Era redator e ator no programa do cantor Dick Farney.
O mordomo Gordon
Jô ralou por anos na Record até aparecer em 1967 a grande chance que ansiava: A Família Trapo, o sitcom de maior sucesso e influência da história da TV brasileira.
Além de redator, Jô interpretava o mordomo “britânico” Gordon, mas os astros da série eram os já famosos Otelo Zeloni como o chefe de família e Ronald Golias como Bronco, o cunhado parasita.
Golias foi outro gênio da comédia, mas quem escrevia as falas do Bronco era Jô Soares…
“Todo mundo achava que o Ronald Golias improvisava o tempo todo, que ia criando suas falas enquanto o programa ia se desenvolvendo. Nada mais falso. O Golias não improvisava muito, gostava de seguir o script. Claro que, como todo bom comediante, tinha momentos de invenções geniais, mas isso só acontecia porque estava sempre seguríssimo no texto. Só entrava em cena com suas falas bem decoradas, firmíssimas. Quando necessário, ele improvisava”, escreveu Jô.
E, sim, há um trocadilho infame no nome de Gordon. Jô contou em sua autobiografia: “Minha ideia inicial era que ele se chamasse Winston, em homenagem ao Churchill, que também era gordo e o meu ídolo de sempre. (…) Mas o Golias insistiu em Gordon, mais parecido com ‘gordo’”.
O lendário “incêndio da Record” (na verdade, quatro: um em 1966, outro em 1967 e mais dois nos teatros da emissora em 1969 – todos muito suspeitos em tempos de ditadura) destruiu quase tudo que a emissora tinha nos arquivos.
De A Família Trapo, que ficou no ar até 1971, sobrou um único episódio com participação de Pelé, cujas imagens ocasionalmente são reprisadas em documentários e programas de TV até hoje.
Em 1969, Jô arriscou-se nos palcos com Todos Amam um Homem Gordo, que pode ser considerado um dos primeiros shows de comédia stand-up no país – Chico Anysio também já explorava esse estilo.
Só que Jô preferia o termo “one-man show” para o que fazia por quase duas horas por noite num teatro. Seu espetáculo tinha esquetes e troca de figurinos, não apenas um monólogo cômico.
Fez dez temporadas de shows solo no total. O mais notório foi Viva o Gordo e Abaixo o Regime, que estreou em 1978 e deu origem ao nome de seu programa de TV dos anos 1980, o Viva o Gordo.
A Era Globo
Em 1971, Jô trocou a Record pela Globo, que já se transformava na gigante da TV brasileira. Estreou no humorístico Faça Humor, Não Faça Guerra e emplacou como Norminha, primeira dos muitos personagens marcantes dele nos humorísticos da emissora. Até disco como Norminha ele lançou.
Nessa época, Jô chegou a emagrecer muito graças a um regime radical que depois ele abandonou. Ele lembra da reação do público no Volume 1:
“Todo mundo que emagrece recebe elogios, eu recebia olhares e comentários de reprovação:— Ah… você era mais engraçado quando era gordo…— Minha senhora, se gordura fosse engraçada, bastava comprar um quilo de toucinho, pendurar na sala e ficar rindo o ano inteiro...”
Outro quadro do programa era o dos dois Napoleões de hospício montados em cavalinhos de madeira, em parceria com Renato Corte Real, cômico muito popular nos anos 1960.
Basicamente, a estrutura desses programas de comédia da Globo se mantinha igual: pelo menos dois ou três comediantes principais (como Renato Corte Real e Agildo Ribeiro, além do Jô), esquetes com personagens que apareciam toda semana e outros que não se repetiam.
O nome era trocado e a estrutura levemente modificada de tempos em tempos: em 1973, virou Satiricom e, em 1976, Planeta dos Homens. Mas era aparente que os quadros com Jô Soares eram os de maior sucesso.
A abertura política dos anos finais da ditadura militar (de 1979 a 1985) ajudou Jô a incluir um tema antes proibido: política.
“Começamos a ousar mais no humor de fundo político, criando vários quadros e personagens que faziam alusão à realidade vivida pelo país. Tinha o Evaristo, uma espécie de funcionário público (‘funcionário anônimo’, ele dizia) que usava o bordão ‘Não me comprometa’ ”, lembrou Jô no Volume 2 de suas memórias.
Outra fonte de inspiração podia ser o próprio elenco, como Paulo Silvino. Jô escreveu:
“O Silvino era casado com uma moça linda e eu pegava no pé dele, dizendo que, em vez de estar ali, ele deveria estar em casa com ela. A brincadeira gerou um dos quadros de maior sucesso do Planeta dos Homens, aquele do bordão ‘Vai pra casa, Padilha’. O Martim Francisco fazia o Padilha, um cara que, toda vez que chegava a um lugar, ouvia da turma: ‘O que é que você está fazendo aqui, com aquele mulherão em casa?’, e em seguida o bordão: ‘Vai pra casa, Padilha!’”.
Ele pressionou a Globo por muito tempo para ter seu programa-solo, como Chico Anysio já fazia desde a década de 1960. Conseguiu finalmente com Viva o Gordo, que durou de 1981 a 1987.
A galeria de personagens (e seus bordões ainda lembrados) que ele criou na Globo durante 16 anos é longa. Aí vão alguns:
Irmão Carmelo (“Casa-separa, casa-separa, casa-separa” e “Cala a boca, Batista!”)
Dr. Sardinha (caricatura do então ministro Delfim Netto, cujo bordão era “meu negócio é números”)
Bô Francineide, a estrela pornô aspirante a estrela acompanhada pela minúscula porno-mãe (a longeva Henriqueta Brieba)
Capitão Gay (“Cansei!”)
Gardelón, argentino que recebia ofertas para entrar em roubadas para um “amigão” por meros “500 cruceros” e respondia com o bordão “Muy amigo… Muy amigo…”
Zé da Galera, fanático pela Seleção de 1982 que telefonava para o técnico Telê Santana de um orelhão e implorava pela escalação de um ponta-direita (“Bota ponta, Telê!”)
Sebá, o último exilado político da ditadura vivendo em Paris que telefonava toda a semana para a esposa no Brasil (“Qu’est-ce que c’est, Madalena?” e “Amancebou-se”)
Vovó Naná, a figurante de TV
General, militar que acorda no hospital após seis anos em coma e se desespera com cada notícia depois do fim da ditadura (“Me tira o tubo!”)
Reizinho (que perguntava “Que é que eu sou?”só para os súditos responderem: “Sois rei! Sois rei!”)
Piloto, o assistente de produção de TV que só errava (“Falha nossa!”, frase que antes era usada a sério nos telejornais da Globo para retificar uma informação)
Dentista, um tarado pelas clientes que exclamava “Bocão!”. Hoje seria impensável que um quadro desses fosse ao ar
Tavares, o pai que achava que o filho gay era machão e achava que o amigo é que não percebia que tinha um filho homossexual (“Tem pai que é cego…”)
Zezinho, o telespectador que reclamava do programa conversando com o próprio Jô
O sonho do talk-show próprio
Irrequieto, Jô começou a cansar dos humorísticos e passou anos insistindo com Boni, o grande chefe de toda a Rede Globo, para ter um programa de entrevistas de fim de noite.
Seria um talk-show como o The Tonight Show apresentado por Johnny Carson (também cômico de origem), um monumento da TV americana desde os anos 1960.
O sonho do talk-show era antigo. Desde que Jô viu nos EUA, por volta de 1954, a primeira versão do The Tonight Show, apresentada pelo músico e apresentador Steve Allen.
Jô conseguiu ter sua primeira experiência com o formato na TV Record em 1963 no programa do jornalista Silveira Sampaio, que já fazia talk-shows desde a década anterior em outras emissoras.
Primeiro, Jô apareceu como tradutor para entrevistados internacionais, depois como repórter de matérias curiosas e como comentarista. Assim foi até a repentina morte de Sampaio em novembro de 1964, aos 50 anos.
Como Boni e a Globo não cederam, Jô fez o que parecia impensável: fechou com Silvio Santos sua ida para o SBT, com a garantia de que o talk-show iria ao ar.
No começo, de 1988 a 1990, Jô até teve também um programa humorístico no SBT chamado Veja o Gordo. Mas logo ele ficaria apenas com o programa de entrevistas. E assim foi até se despedir em 2016 na Globo.
*Este texto é uma versão revisada, atualizada, modificada e aumentada do publicado em agosto de 2022 no site Gizmodo Brasil.
O sucesso do Vivó Gordo em Portugal também foi enorme.
Todas as frases referidas ainda são hoje recordadas pela geração que tem 50 ou mais anos.
Obrigado pela recordação. 👍
https://www.rtp.pt/noticias/cultura/jo-soares-o-humorista-botimo-melhor-que-bom-melhor-que-otimo_n1424535