Henfil, nosso "cucaracha" em Nova York
Hoje fora de catálogo, Diário de um Cucaracha expõe as qualidades do cartunista na escrita
Um cartunista com o dom da escrita. O mineiro Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988), é, com justiça, mais notório por seus desenhos engraçados, combativos e influentes em jornais, revistas e gibis entre os anos 1960 e 1980. Mas ele foi autor de bons livros predominantemente de texto com relatos pessoais (e, ao mesmo tempo, jornalísticos). O principal é Diário de um Cucaracha, que reconstitui sua temporada de auto-exílio nos Estados Unidos durante os anos de ditadura no Brasil.
Henfil, que se mudou do Rio para Nova York em 1973 tanto para fugir da repressão da ditadura em vigor como para tentar a sorte como autor de quadrinhos no mercado americano, faz um retrato bem desencantador e realista do status de um brasileiro (ou um latino-americano) “in America”.
Originalmente publicado em 1976 e reeditado algumas vezes, Diário de um Cucaracha está fora de catálogo há um bom tempo. Pode ser encontrado em versões usadas em sebos físicos ou digitais. Mas é digno de uma reedição caprichada.
O livro também é famoso por sua capa com uma enorme barata (“cucaracha” em espanhol, palavra usada pejorativamente nos EUA para se referir aos imigrantes latino-americanos), com todo o seu potencial de causar nojo e prejudicar as vendas.
Mas a capa tem tudo a ver com o humor sádico e provocador que caracterizava Henfil em seus cartuns.
O nojo que uma barata provoca em muitas pessoas levou a Editora Record, quando reeditou o livro nos anos 1980, a fazer uma capa sem o inseto e o aviso (hoje impensável) “Edição especial para mulheres". É claro que essa edição dedetizada tinha a cumplicidade de Henfil.
Os antecedentes do livro
Mineiro de Ribeirão das Neves, Henfil se destacou como cartunista em publicações de Belo Horizonte e se mudou para o Rio de Janeiro em 1967.
Com seu traço livre, nervoso, cheio de movimento e de aparência falsamente tosca, além do humor fora dos padrões, ele provocou sua primeira façanha com os cartuns sobre futebol no diário esportivo Jornal dos Sports, criando novos personagens-símbolos para os times grandes cariocas.
Graças ao personagem criado por Henfil, os flamenguistas assumiram o Urubu (até então, um termo usado por rivais por causa da enorme massa de negros pobres que torciam para o Flamengo) como algo positivo e digno de orgulho.
Henfil também fez cartuns esportivos para a revista Placar nos primeiros tempos da publicação, em 1970. Durante a Copa do Mundo daquele ano, vencida pelo Brasil, o traço elétrico do cartunista comentava com sarcasmo os jogos da Seleção.
Mas era um sarcasmo a favor da equipe de Pelé, Gérson, Rivellino e Jairzinho. Mesmo tão politizado e de esquerda, Henfil não entrou na onda de torcer contra a Seleção por causa da ditadura.

Entre outras publicações, Henfil se consagrou no jornal humorístico O Pasquim, lançado em 1969. E com os gibis Fradim, publicados pela Codecri (a editora d’O Pasquim). Seus desenhos eram ácidos, cheios de crítica social e contestadores (até onde se podia em tempos de censura oficial) do regime militar.
Henfil se concentrou em personagens recorrentes. Como os frades (um minúsculo muito moleque e sacana, outro alto, magrelo e carola) de Fradim, as figuras do sertão nordestino (a ave Graúna, o Bode Orelana e o humano Zeferino) e o Cabôco Mamadô.
Mamadô “enterrava” impiedosamente aqueles que pisavam na bola em seu Cemitério dos Mortos-Vivos. Ali, Henfil sepultava qualquer pessoa notória que ele julgava ser apoiadora ou condescendente com o regime militar.
Ganharam túmulos desde Wilson Simonal (quando eclodiu a suspeita de que fosse colaborador da ditadura) a Elis Regina, que cantou num evento comemorativo do governo do general Médici – sob coação, como se soube anos depois.
Quando viraram grandes amigos e Elis gravou o hino anti-ditadura “O Bêbado e a Equilibrista”, com o verso “a volta do irmão do Henfil” (o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, exilado no exterior por causa da perseguição do regime), o cartunista se desculpou pela tirinha do Cabôco Mamadô.
O auto-exílio
Todo mundo do primeiro time d’O Pasquim teve problemas com o regime e passou algum tempo preso. O sufoco levou Henfil a se mudar em 1973 para Nova York para ter algum alívio. Também viajou com a pretensão de emplacar seus desenhos no mercado americano.
Aí começa o período coberto por Diário de um Cucaracha. Os “capítulos” são cartas escritas para a mãe e amigos no Brasil (foram cerca de 600 correspondências, na estimativa do próprio autor), exceto uma longa entrevista para O Pasquim meses antes da viagem.
A qualidade descritiva e confessional dos escritos de Henfil faz com que nem pareçam correspondência pessoal. Certamente houve edição, mas se o material bruto não tivesse qualidade, não daria pra editar muita coisa satisfatoriamente.
É interessante como ele reage a cada descoberta cotidiana num país diferente do que se via aqui no Brasil em filmes e na TV.
Das dificuldades com o idioma à chegada pelo correio de uma boneca inflável encomendada pela redação de O Pasquim para a produção de fotonovelas cômicas.
E há momentos tocantes como um reencontro com o irmão Betinho no Canadá, onde ele vivia exilado por perseguição política da ditadura.
Os choques culturais são ainda mais nítidos nas tentativas de emplacar seu trabalho de cartunista nos EUA, a essência do livro.
Henfil levou seu portfólio de cartuns para as revistas masculinas Playboy e Penthouse, a semanal de informação Time, a satírica Mad e a esquerdista The Nation, além dos jornais The New York Times e The Washington Post.

Já as tirinhas de quadrinhos foram levadas ao United Feature Syndicate (que Henfil chama de “United Press Syndicate”, o que não chega a estar errado), grande central de distribuição de HQs como Peanuts, A Família Buscapé e Tarzan (e, anos depois, Garfield).
As rejeições, das mais bondosas às mais frias ou cruéis, se acumularam. Na visita à redação da Mad, o brasileiro conversou com o cartunista mexicano Sérgio Aragonés, um dos principais nomes da publicação na época.
Radicado nos EUA desde 1962, Aragonés tentou orientá-lo a adaptar seu estilo para se dar bem por lá, segundo escreveu Henfil:
“Contou que no México ele tinha uma linha social e muito sucesso com isto. Mas, para poder ficar nos Estados Unidos, no [sic] Mad, tinha que esquecer tudo isso, como esqueceu. […] Me deu conselhos, me ensinou seu pulo do gato para ter sucesso na América. Me pediu para esquecer meu país, minha cultura, nosso humor, ou jamais seria aceito aqui. Jamais teria sucesso. E eu cá pensando na cara triste dele, como se seu corpo quisesse desmentir o que a boca dizia”.
Após tanto insistir, Henfil conseguiu um contrato com a Universal Press Syndicate (UPS), outra distribuidora de HQs para jornais, que tinha na época a tira Doonesbury em ascensão.
Os quadrinhos Fradim foram traduzidos como The Mad Monks by Henfil e ele começou a adaptar e produzir no formato padrão de três ou quatro quadros em linha horizontal (no Brasil, historinhas do Fradim ocupavam páginas inteiras dos gibis).

Dez jornais de EUA e Canadá compraram os direitos de publicação de The Mad Monks junto à UPS. A estreia foi em novembro de 1974.
Em dezembro, vários já cancelaram ou simplesmente paravam de publicar a “tirinha sick e anti-Deus”, como escreveu o próprio Henfil.
Após 51 dias, sobrou nenhum jornal. Em fevereiro de 1975, veio o rompimento do contrato com a UPS. Como consolo, Henfil citou que durou mais que um gênio do cartum americano, Jules Feiffer, cuja tentativa de tirinhas foi cancelada após 15 dias.
Já com o ânimo derrubado e com planos de voltar, Henfil ainda fez mais uma tentativa na Playboy, com direito a entrevista com uma executiva da publicação. Uma sessão de esculacho muito educado, nas quais ele ouviu que as mulheres de seus cartuns eram “feias” para a revista, notória pelas fotos de nudez.
De volta ao Brasil
Após a frustrada temporada americana, encerrada em 1975, Henfil retomou suas atividades no Brasil com a mesma intensidade e qualidade.
E, carismático, se transformou numa figura de TV, mostrando-se desenvolto em entrevistas até ganhar, em 1980, seu próprio espaço com um quadro no programa TV Mulher, da Rede Globo: o “TV Homem” – um contraponto cômico masculino (que nada tinha de machista) num programa feminista.
Nos anos 1980, Henfil se engajou ainda mais com a abertura política dos anos finais da ditadura. N’O Pasquim, publicou em 1983 um cartum que ainda se mostra atual:

Hemofílico, Henfil necessitava de periódicas transfusões de sangue para seguir vivo. Com a Aids ainda fora de controle naqueles meados de anos 1980, contraiu o HIV numa delas. Desenvolveu a doença e morreu em janeiro de 1988, a um mês de completar 44 anos. Seus irmãos Betinho e Chico Mário tiveram o mesmo destino pela mesma razão.
O legado de Henfil é mantido com extrema dedicação e competência por seu filho Ivan Cosenza de Souza, que cuida de reedições e outros trabalhos relacionados ao cartunista. Também há um perfil oficial do artista no Facebook.
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Adendo 1: O site da Biblioteca Nacional disponibilizou em 2019 edições completas de O Pasquim. Elas podem ser acessadas a partir deste link. É possível dar buscas pelo nome “Henfil” para acessar qualquer página que inclua o nome dele.
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Adendo 2: Há uma boa biografia de Henfil: O Rebelde do Traço, de Denis de Moraes. Foi publicada pela primeira vez em 1996 e reeditada em 2016. Está fora de catálogo.
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Adendo 3: Além de Diário de um Cucaracha, Henfil publicou outro longo relato bem escrito. Henfil na China, de 1980, relembra, com muitos detalhes e senso de humor, sua viagem pelo país logo após a morte do líder Mao Tsé-Tung (1893-1976), num tempo em que o Ocidente sabia praticamente nada sobre o gigante do Oriente sob regime comunista. Também está fora de catálogo atualmente.
Este texto é uma versão revisada, ampliada e atualizada do publicado em meu blog anterior Século Pop em setembro de 2020 sob o título "Um cartunista brasileiro em Nova York".
Li só o Henfil na China, mas tenho meu Cucraracha guardado aqui. O na China tem uma passagem hilária com ele no cinema com um intérprete chinês que por algum motivo começa a descrever até as cenas sem diálogo nenhum.
Adendo extra: o documentário "Henfil" (acho que de 2018) é uma boa pedida também.