Creedence e sua saga pouco falada
Livro Bad Moon Rising recapitula história da banda que durou apenas quatro anos
O Creedence Clearwater Revival foi uma banda singular. Fez muito sucesso em sua época, seus hits compostos por John Fogerty viraram clássicos duradouros do rock que tocam até hoje e teve quatro anos (1968-1971) quase irretocáveis até se autodestruir praticamente no auge.
No entanto, sua história é pouco conhecida por quem não é fã dedicado. Não há lendas urbanas pop sobre seus integrantes como "Paul McCartney morreu e foi substituído por um sósia", "Keith Richards troca todo seu sangue na Suíça” ou "Jim Morrison forjou sua morte e vive até hoje numa ilha deserta".
Também nada de quartos de hotel destruídos, limousines na piscina, guitarras incineradas ou arrebentadas contra o amplificador.
Quase nenhuma informação sobre as vidas pessoais dos membros virou notícia, nem houve escândalo de sexo ou drogas.
Havia apenas quatro caras quase estáticos no palco tocando rock'n'roll. O Creedence começa e acaba em sua música.
Para conhecer melhor a trajetória do Creedence e todas as encrencas que afetaram sua jornada, um bom livro é Bad Moon Rising: The Unauthorized History of Creedence Clearwater Revival, de Hank Bordowitz, originalmente publicado em 1998 e atualizado em 2007.
Sobre a penetração do quarteto de El Cerrito, Califórnia (EUA) na cultura pop, o livro cita a crítica Ellen Willis (1941-2006).
“Apesar de toda a imensa popularidade do Creedence, John Fogerty nunca se tornou um herói da mídia e o grupo nunca cruzou a fronteira entre banda de rock de sucesso e fenômeno cultural", escreveu Ellen, de acordo com Bordowitz.
Dois irmãos e dois amigos
A origem do Creedence está no The Blue Velvets, banda formada em 1959 por John Fogerty na guitarra com os amigos Stu Cook no baixo e Doug Clifford na bateria.
Um pouco depois, Tom Fogerty, irmão mais velho de John que já tinha experiência de palco, entrou e assumiu o papel de vocalista principal, além de tocar guitarra.
Tom passou a ser o líder. O repertório de palco era basicamente de covers de rock'n'roll e rhythm'n'blues. Mas gravaram músicas próprias e lançaram três compactos em 1961 e 1962 por uma gravadora local.
Após ralar muito onde quer que os deixassem tocar, os Blue Velvets gravaram algumas músicas como teste para a gravadora Fantasy, que era mais focada em jazz, em 1964.
Passaram meses sem receber um retorno, até que finalmente um compacto foi lançado. Só que um dos donos da Fantasy mudou o nome da banda para The Golliwogs (Os Espantalhos), para aproveitar a onda de nomes “esquisitos” que vinham do Reino Unido e dominavam as paradas americanas.
Chocada pela mudança para um nome que odiavam, a banda ainda teve de lidar com incômodos como usar perucas de espantalho em algumas ocasiões.
The Golliwogs teve seis compactos lançados pela Fantasy entre 1964 e 1966, todos com repercussão praticamente zero. Tom Fogerty ainda era o principal comandante, mas com o irmão John assumindo cada vez mais vocais principais.
Rebatizados
Nesse tempo todo, John vinha compondo músicas que não se encaixavam bem no que era o trabalho dos Golliwogs. As novas canções eram uma soma de rock com country, folk, blues e soul. E John firmava uma voz muito pessoal, berrada, forte, firme, às vezes rouca, às vezes um rugido.
Curiosamente, nenhuma música composta por John Fogerty para o Creedence em toda a duração da banda tratava de amor romântico ou sensual. Nem a própria palavra “amor” aparece – isso só aconteceu em covers.
O sétimo e último compacto dos Golliwogs saiu em 1967 e finalmente trazia duas músicas dessa safra autoral de John. O lado A era "Porterville”.
John assumia o papel de líder da banda e guitarrista solo, relegando o irmão Tom ao mero papel de guitarrista rítmico.
A mudança levou a banda a reinaugurar sua carreira com outro nome e outra imagem. Afinal, os rapazes sempre odiaram o nome The Golliwogs imposto pela gravadora. Sem falar nas ocasionais perucas de espantalho.
A Fantasy concordou com a ideia e fez uma lista de novos nomes possíveis, seguindo a linha de bandas psicodélicas americanas com denominações malucas.
Depois de muito debater internamente, a banda chegou com apenas uma sugestão: a união de Creedence (fé, crença), Clearwater (água limpa, preocupação ambiental) e Revival (renascimento). E a gravadora topou.
Tom já tinha pensado em Creedence, Doug gostava de Clearwater por suas preocupações ecológicas. Revival tinha apelo a John por um lado de celebração religiosa e por significar um renascimento da banda.
“Finalmente, John juntou os três nomes e nos rendemos ao inevitável. Um nome mais esquisito que Buffalo Spingfield ou Jefferson Airplane", contou o baixista Stu Cook.
O primeiro álbum do Creedence saiu em 1968, puxado por "Porterville” (sim, o último compacto dos Golliwogs) e duas covers com longos improvisos instrumentais de rocks dos anos 1950, “I Put a Spell on You” e “Suzie Q".
Não foi um fenômeno, mas repercutiu melhor para o quarteto que qualquer coisa que eles tivessem lançado antes como The Blue Velvets ou The Golliwogs.
Déspota esclarecido
O melhor ainda estava por vir na entrada de 1969. A banda começou a tocar em shows "Born on the Bayou”, ainda inédita em disco.
A descrição do processo de composição já dá uma ideia do domínio completo que John Fogerty assumiria na banda.
“Eu tinha o riff (...) então gritei para o Stu: ‘Toque estas notas no baixo. Doug, faz uma batida assim. Tom, toque nas batidas pares. Todo mundo fica em Mi’", disse John. E assim nasceu a música com cheiro de pântanos do Bayou do sul dos EUA, embora a banda fosse da ensolarada Califórnia.
E logo John terminou "Proud Mary", um rock com o sabor nostálgico daqueles barcos-cassino do rio Mississippi do século XIX.
E a semente das discórdias que viriam no futuro também veio com essa música. John assumiu um papel de déspota esclarecido com controle total da gravação, deixando os outros três fazerem apenas o que era necessário.
Mas John proibiu Tom, Stu e Doug de cantarem os vocais de apoio “rolling, rolling, rolling on the river” tão marcantes em "Proud Mary".
O próprio John se encarregou de gravar seus próprios vocais de apoio porque tinha certeza de que o resultado seria melhor.
“Eu sabia que não queria a banda cantando. Eu tinha na cabeça como tinha de ser o som, então eu barrei essa ideia. Mas é claro que tivemos uma briga por isso", lembrou John.
Depois de gravar todos os vocais sozinho em 45 minutos, ele ainda foi ao encontro da banda firmar sua posição.
“Falei para eles que ‘não importa quem faz o quê’. O que importa é que o grupo consiga a melhor gravação. (...) ‘Esperamos a vida inteira por esta chance. Se fizermos algo ruim sob o microscópio, estamos perdidos…’ Falei claramente para eles que eu, pelo menos, não queria voltar a trabalhar no lava-jato", lembrou John.
Bem, "Proud Mary” vendeu um milhão de cópias nos EUA, estourou no mundo todo e é o maior clássico do Creedence. Não dá para dizer que John estava errado.
Madrugada em Woodstock
Bayou Country, o segundo LP (que incluía "Proud Mary"), também ia bem. Mesmo assim, John tratou de compor e botar para gravar um terceiro álbum, Green River. Puxado pelo compacto "Bad Moon Rising" e, depois, pela faixa-título.
Outros dois sucessos estrondosos. Dois clássicos históricos. O prestígio do Creedence no primeiro semestre de 1969 era tanto que a banda teve o privilégio de ser a primeira a assinar contrato para tocar no festival de Woodstock em agosto. E serviu de isca para atrair outros nomes de peso.
“Os grupos estavam fazendo hora pra ver quem iria tocar e quem não. (...) Assim que o Creedence assinou, todo mundo pulou dentro e todos os nomes do primeiro time vieram", falou o baterista Doug Clifford.
O cachê que o Creedence acertou foi de 10 mil dólares. Era uma das duas atrações principais (a outra era The Who) do sábado, segundo dia do festival que faria história.
O problema é que, quando o quarteto foi para o palco, já eram 3h da madrugada. E na sequência do Grateful Dead, a maior de todas as bandas hippies especializada em longos improvisos soporíferos – a antítese do Creedence.
Numa entrevista à revista Rolling Stone em 1987 resgatada no livro, John disparou seu ressentimento com aquela noite em Woodstock:
“Estávamos prontos para agitar com rock e esperamos, esperamos e esperamos até finalmente chegar a nossa vez. Minha reação foi: ‘Uau, vamos tocar depois da banda [Grateful Dead] que botou meio milhão de pessoas para dormir.’ Eu estava tocando e gritando e, lá pela terceira música, olhei além dos holofotes e vi cinco fileiras de corpos enroscados – todos dormindo. Chapados e dormindo. [...] Parecia uma pintura de uma cena de Dante, apenas corpos do inferno, enroscados e dormindo, cobertos de lama. [...] A geração Woodstock – yeah, demais. Congestionamento de 50 milhas. Sem comida. Sem água. Sem sono. Sem abrigo. Choveu, durma na lama".
John recusou que “Bad Moon Rising” fosse usada no documentário Woodstock, que chegou aos cinemas em 1970, nem no álbum triplo de trilha sonora.
Uma decisão questionável, levando em consideração o que o filme foi bom para as carreiras ainda iniciantes de Crosby, Stills & Nash, Santana e Joe Cocker, sem falar na mítica apresentação de Jimi Hendrix tocando “Star-Spangled Banner”, o hino dos EUA.
Vale lembrar que o Creedence deixou pouquíssimos registros em filme ou vídeo. A inclusão em Woodstock teria dado chance a muita gente pelo mundo ver a banda em ação.
“O Creedence não foi incluído no filme original nem no álbum porque Fogerty achou que seria ruim para nossa carreira", lamentou Stu Cook. “Me surpreende a quantidade de gente que não sabe que fomos uma atração principal em Woodstock".
“O produtor [do filme] me enviou uma fita com as gravações. Não senti que a apresentação foi o nosso melhor e não achei que seria bom incluir [“Bad Moon Rising”] no filme", justificou-se John Fogerty.
Os registros só vieram à tona décadas depois, mas era tarde demais.
Rachaduras
Após Woodstock, o Creedence partiu para fazer seu terceiro álbum no mesmo ano e quarto na carreira – quem tem uma produtividade dessas hoje?
Willy and the Poor Boys saiu em novembro de 1969 e era o álbum mais politizado do Creedence.
A raivosa "Fortunate Son” era um protesto muito bem feito contra os filhos de políticos e ricaços que se safaram de servir ao exército na Guerra do Vietnã, que vinha matando inúmeros soldados (pobres) americanos.
Se o Creedence já era uma das bandas mais ouvidas entre as tropas no Vietnã, "Fortunate Son” garantiu ao Creedence um lugar permanente no coração daqueles soldados. E, é claro, mais um clássico.
Menos celebrada, “It Came Out of the Sky” também era politizada, mas com bom humor. Satirizava o ex-ator Ronald Reagan, então governador da Califórnia e futuro presidente dos EUA.
John Fogerty deixava explícito que estava do lado dos progressistas e democratas, longe do conservadorismo do Partido Republicano americano.
A última faixa era “Effigy”, uma tensa e sombria canção sobre ganância americana e os métodos sinistros do governo do presidente Richard Nixon – isso três anos antes do estouro do escândalo de Watergate que levaria Nixon, um republicano, a renunciar em 1974. Os solos de guitarra de John Fogerty praticamente rosnam de indignação.
Se 1969 foi um ano de glórias (exceto por Woodstock), 1970 apresentaria as primeiras rachaduras no Creedence.
Tim Fogerty, talvez manifestando tardiamente algum ressentimento por ter sido suplantado pelo irmão mais novo, começou a demonstrar um comportamento de rock star deslumbrado.
Até aí, nada de mais. A banda fez seu quinto álbum, Cosmo's Factory, que trazia “Who'll Stop the Rain” e uma cover longuíssima, cheia de solos de guitarra, de “I Heard It Through the Grapevine”, sucesso soul de Marvin Gaye em 1968.
O sexto álbum não demorou. Pendulum saiu no final de 1970 e era puxado pela eterna "Have You Ever Seen the Rain", além do rock "Hey Tonight".
Mas, nas outras faixas, John manifestou uma influência exagerada da banda instrumental de soul Booker T. & The MG's, que acompanhava o cantor Otis Redding (1941-1967) e abriu shows do Creedence no começo do ano.
John entupiu várias faixas com órgão, instrumento de destaque no Booker T. & The MG's. A ponto de os próprios MG's ficarem meio incomodados.
O resultado dividiu opiniões da crítica e do público pela primeira vez na carreira da banda (embora seja meu disco favorito do Creedence desde meus 4 anos de idade).
Democracia Creedenciana
Esse primeiro abalo na reputação criativa do Creedence serviu para que John fosse derrotado em seu despotismo esclarecido do cantor-compositor-guitarrista solo-arranjador-porta-voz.
Tom Fogerty foi mais longe e simplesmente saiu do Creedence, rompido com o irmão.
Stu Cook e Doug Clifford aceitaram ficar se as decisões fossem tomadas democraticamente. Eles queriam ter voz nas composições, escolha de músicas etc.
“As coisas estavam mal", relembrou John Fogerty. “Meu truque que funcionou era compor e mostrar para cada um o que tocar. Nosso sucesso também ajudou a mantê-los quietos. Até que tivemos uma grande reunião (...) uma semana antes das gravações de Pendulum. A reunião não afetou Pendulum, mas a ideia da banda era se tornar uma democracia em vez de uma autocracia ou, talvez, uma ditadura. Eu era o tirano, um ditador".
Ferido, John aceitou as condições, mas exerceu a nova democracia na banda de um jeito que castigava Stu e Doug.
John estabeleceu que o álbum seguinte seria igualmente dividido em três partes iguais, com cada membro cuidando da composição, vocais e arranjos de suas próprias músicas. Ele não faria solos nas faixas de Stu e Doug.
Mardi Gras, o álbum resultante lançado em 1971, foi um desastre completo. Ou um suicídio de carreira.
As três músicas compostas e cantadas por John Fogerty eram boas, mas nenhuma virou um grande sucesso na época nem um clássico duradouro.
Também cantada por ele, a cover de "Hello Mary Lou”, rock-balada dos anos 1950 de Ricky Nelson, ficou bem decente.
As seis faixas restantes (três de Doug, duas de Stu e uma parceria de ambos) são uma catástrofe.
As composições são amadoras, as vozes deles são terríveis como vocalistas principais. E os arranjos são os mais básicos possíveis, sem qualquer ajuda efetiva de Fogerty, que se limitou a tocar bases de guitarra.
O resultado: o Creedence acabou ali, com um álbum desnecessário que mancha um pouco uma discografia de resto irretocável.
O crítico Jon Landau escreveu na época na revista Rolling Stone que Mardi Gras era “o pior álbum de uma banda de primeiro nível que já ouvi".
“Autoplágio”
Só que, com o fim do Creedence, a Fantasy ficou com todos os direitos sobre as músicas compostas pela banda.
John Fogerty não era dono das próprias canções. Ele lançou-se numa batalha judicial para recuperar os direitos que só se encerrou em janeiro de 2023, com vitória dele.
Até isso acontecer, foram anos turbulentos. Primeiro, John se recusou por mais de uma década a tocar qualquer música do Creedence em seus shows da carreira solo.
Fogerty só começou a mudar de ideia quando Bob Dylan lhe disse que era melhor voltar a tocar as músicas antigas, senão todos pensariam pelo resto dos tempos que "Proud Mary” era uma música da Tina Turner.
Outro golpe foi quando John foi processado por suposto plágio de uma música que ele mesmo fez!
Os donos dos direitos de "Born on the Bayou” cismaram que "The Old Man Down the Road", do álbum Centerfield (1985), era uma cópia.
John teve de ir ao tribunal com guitarra e amplificador para demonstrar ao juiz do processo que as duas músicas, ambas feitas por ele, eram diferentes entre si. Foi dado ganho de causa para Fogerty.
Tom Fogerty morreu em 1990, aos 48 anos. Adquiriu HIV numa transfusão de sangue durante uma cirurgia anos antes e acabou desenvolvendo Aids.
Stu Cook e Doug Clifford partiram para ganhar a vida por vários anos com uma banda cover batizada de Creedence Clearwater Revisited.
Bad Moon Rising é o livro do qual tratamos aqui, mas há pelo menos outras duas obras que merecem consulta.
John Fogerty publicou suas memórias em Fortunate Son: My Life, My Music em 2015.
E, em 2022, saiu outra biografia da banda: A Song For Everyone: The Story of Creedence Clearwater Revival, de John Lingan.
Boa tarde Marcelo, gostaríamos de enviar um livro, pode compartilhar um email ou endereço, por favor? Meu contato é guilherme@bushidoproducoes.com.br . Obrigado.