Cramps: loucos soltos no hospício
Show em hospital psiquiátrico fez a fama da grande banda doida do rock'n'roll
O rock'n'roll ficou um pouco menos divertido desde o fim dos The Cramps em 2009. Porque a banda tinha uma característica que anda em falta: a loucura desvairada e humorada – nas gravações e, principalmente, no palco.
Em nenhum momento esse abandono ensandecido foi tão literal que no show que os Cramps fizeram na instituição psiquiátrica California State Mental Hospital em Napa, Califórnia (EUA), em 1978.
Essa apresentação é fácil de encontrar no YouTube (uma simples busca por "cramps napa” já dá como primeiro resultado). E sua história está contada na melhor biografia da banda, Journey To The Centre Of The Cramps, de Dick Porter, publicado em 2015.
Membros da banda eletro-punk The Screamers contaram aos Cramps que tinham tocado num baile de Páscoa no hospital psiquiátrico de Camarillo, na Grande Los Angeles, semanas antes. Nasceu daí a ideia de fazer igual. Ou melhor.
“A única banda que ouvi dizer que fez tal coisa foi The Screamers. A música deles era bem mais séria, não era muito para dançar. E teve um efeito meio deprimente – eles tocaram para [pacientes de] uma ala mais terminal. As pessoas ficaram incomodadas”, contou Lux Interior (1946-2009), o vocalista dos Cramps.
O show bizarro
Em poucos dias, os Cramps conseguiram uma permissão para fazer um show no hospital psiquiátrico em Napa.
E, em 13 de junho de 1978, lá estava o quarteto num palco ao nível do chão, com sua inusitada formação de vocais, duas guitarras distorcidas e bateria (nada de contrabaixo) para se apresentar a entre 100 e 200 pacientes. Teve até uma banda de abertura, The Mutants.
Lux novamente: “Pensamos que se fôssemos a um hospital psiquiátrico, o público iria contribuir – e eles realmente contribuíram!”
Segundo o relato de Lux, o rock'n'roll dos Cramps fez os pacientes derrubarem uns aos outros enquanto dançavam ou lambiam as paredes ou vinham conversar com a banda em pleno show. Senhoras dançavam com empolgação.
“Foi o show mais bizarro que já fizemos. Aquelas pessoas ficaram malucas – fizeram tudo que você pensaria que alguém numa instituição psiquiátrica faria", celebrou Lux no livro.
Poison Ivy (1954-), a guitarrista e co-líder dos Cramps (além de mulher de Lux), disse que a empatia entre banda e internados deixou o clima algo mais leve.
“Eles nunca tinham ouvido nossa banda e se divertiram. Antes de tocarmos, estávamos preocupados se eles ficariam inertes, se estariam sedados, tranquilizados ou se ficariam inibidos e não reagissem à gente. Mas eles foram prontamente espontâneos, foi demais mesmo”, falou Ivy.
“Ala T! Ala T!”
Um jornalista da revista punk New York Rocker chamado Howie Klein estava presente e não acreditou no que presenciou. “Nunca vi tanta participação do público", ele escreveu. “Um paciente foi ao superintendente e disse: ‘Esses caras parecem ter saído da Unidade T'. A Unidade T, o ‘super’ me disse depois, era onde ficavam os ‘perpétuos’".
Alguns pacientes puxaram um coro de “Ward T! Ward T!” (“Ala T! Ala T!”). Lux relembrou: “Soubemos depois que a Ala T é a ala da qual ninguém retorna. Ninguém nunca mais vai lhe ver quando se vai para a Ala T. E eles diziam que nós éramos da Ala T. Mas a maioria deles nem era tão esquisita”.
“Foi como tocar para crianças", disse Poison Ivy. “Aquelas pessoas não tinham noção de espaço pessoal. [...] Houve pouca supervisão da equipe [do hospital]. Foi insano”.
Alguns momentos de insanidade foram curiosos. Durante o show, uma dúzia de pacientes mais espertinhos tentou fugir do hospital. Já na música “What's Behind the Mask”, uma paciente pulou de cavalinho nas costas de Lux e ficou berrando no microfone de vez em quando.
Depois, a mesma paciente tirou o microfone da mão do vocalista e se esfregou nele.
Em “Love Me", uma música propositadamente melodramática em que Lux implora por amor, um grupo espontaneamente foi até ele e deu um abraço coletivo.
“Os administradores gostaram tanto da gente que se ofereceram para escrever uma carta de recomendação para conseguirmos shows em clubes. Nunca a recebemos, mas teria sido sensacional ter uma carta de recomendação de um hospital psiquiátrico”, riu Lux.
Como saldo, o vídeo tosco e em preto e branco desbotado do show circulou consideravelmente antes de ser lançado oficialmente em VHS em 1984. E já colocou os Cramps na história do rock antes mesmo de a banda ter um LP lançado.
Carona para toda a vida
Os Cramps nasceram quando, num dia de 1972, Erick Lee Purkhiser deu carona a Kristy Marlana Wallace na região de Sacramento, na Califórnia. Os dois se rebatizaram respectivamente de Lux Interior e Poison Ivy e jamais se largariam até a morte dele.
Os dois compartilhavam os mesmos gostos por rock obscuro dos anos 1950 e 1960, histórias em quadrinhos de terror, filmes B de ficção científica e sexploitation, revistas de pin ups e muito mais que fosse trash e fora da cultura predominante.
Aportaram em Nova York para mergulhar no redemoinho do punk local e decidiram formar uma banda que englobasse tudo de que eles gostavam.
O casal formou The Cramps com as entradas do suposto guitarrista Brian Gregory (1951-2001) – que tinha estilo visual mas não sabia tocar muita coisa – e de uma sequência de bateristas: Pam Balam (?-, irmã de Gregory), Miriam Linna (1955-) e, finalmente, Nick Knox (1953-2018).
A estreia dos Cramps em 1976 foi em alto nível dentro do cenário em que viviam: no palco do bar CBGB's, catedral do punk nova-iorquino. O grupo definiu seu estilo como psychobilly, uma mistura da psicodelia com pedais de distorção das bandas de garagem dos anos 1960 com o rockabilly de caipiras doidos dos anos 1950.
A banda lançou dois compactos em 1978, o EP Gravest Hits em 1979 e seu primeiro álbum Songs the Lord Taught Us em 1980.
Contou com a produção do excêntrico e difícil Alex Chilton, ex-gênio da banda de power pop Big Star. Depois dessa experiência, os Cramps passaram a se autoproduzir.
Loja de fantasias e sex shop
Ao longo dos anos, de várias mudanças na formação (incluindo a troca da segunda guitarra por um baixo) e dos álbuns, os Cramps refinaram seu estilo musical e, principalmente, visual.
Seus figurinos pareciam saídos de uma loja de fantasias retrô ou de uma sex shop pervertida.
Lux Interior atuava sem inibições no palco. Às vezes usando uma minúscula tanga, em outras trajando um macacão de vinil preto e saltos altos femininos.
Poison Ivy revezava seus looks entre deusa da antiguidade, vedete de boate e dominatrix contemporânea.
O psychobilly se manteve por toda a carreira dos Cramps até seu décimo e último álbum, Fiends of Dope Island, de 2003. O último show foi em 4 de novembro de 2006, em Tempe, Arizona.
Devido a um problema cardíaco, Lux Interior morreu aos 62 anos em 4 de fevereiro de 2009 em sua casa em Glendale, Califórnia, determinando o fim oficial dos Cramps.
Em 2022, os Cramps repercutiram para além de seu público cult costumeiro com a inclusão da música “Goo Goo Muck” numa cena de dancinha gótica da atriz Jenna Ortega no seriado Wednesday.
“Goo Goo Muck” teve um aumento de 9.500% de audições no Spotify logo depois que o episódio foi exibido.
Demais. Cramps sempre foi insano ao vivo. Não teria banda melhor pra tocar num lugar desses.
História maravilhosa 😹