Brian Wilson: músico genial, ser humano amador
Artigo de Nick Kent é a melhor bio do homem que fez a obra-prima Pet Sounds
A melhor biografia que li de Brian Wilson (1942-), o gênio residente dos The Beach Boys nos anos 1960, não está num livro especificamente sobre ele ou a banda.
Está numa compilação de artigos do crítico inglês Nick Kent (1951-): The Dark Stuff: Selected Writings on Rock Music, publicada em 1994 e reeditada com material adicional em 2002.
No longuíssimo artigo “The Last Beach Movie Revisited”, que ocupa uma parte substancial do livro de Kent, está o mais definitivo resumo da vida de Brian, dito por seu ex-parceiro Tony Asher (1939-), autor das letras e intérprete dos pensamentos de Brian no fabuloso álbum Pet Sounds (1966):
“Este é Brian. Um músico genial, mas um ser humano amador”.
O artigo foi escrito por Nick Kent no primeiro semestre de 1993 para a primeira edição de The Dark Stuff. Mas ele aglutina material que já tinha sido publicado anteriormente.
Kent reaproveitou o original “The Last Beach Movie”, texto de 30 mil palavras que foi publicado em três partes pelo jornal musical britânico NME (New Musical Express) em edições de junho e julho de 1975.
É nesse material que estão baseados os dois primeiros capítulos do artigo em The Dark Stuff.
Kent conta em “The Last Beach Movie Revisited” que foi explicitamente desestimulado por um cínico executivo da indústria fonográfica de Los Angeles.
“Por que, Jesus Cristo!, você quer perder seu tempo escrevendo sobre Brian Wilson?”, disse o tal executivo. “É 1975! Vá escrever algo sobre Bruce Springsteen, pelo amor de Deus! Wilson acabou. Inchado. Encalhado. Sim, ele foi grande. Todo mundo sabe disso. Mas hoje ele é apenas um triste caso fodido”.
Na terceira parte do texto, Kent revisita seu “High and Bri”, baseado num encontro com Wilson e publicado originalmente no NME de 19 de abril de 1980.
Em 1993, ele escreveu a quarta e última parte do artigo do livro baseando-se, com autorização, em frases de uma entrevista com Brian Wilson feita pelo jornalista francês Michka Assayas em meados de 1992.
O ermitão pop
Quando Kent escreveu e publicou sua matéria gigantesca original em 1975, Brian Wilson tinha se transformado num mistério para o público.
O músico vivia como um ermitão deprimido que passava a maior parte dos dias na cama em sua mansão em Los Angeles.
Sua insegurança e medo de tudo eram tão enormes que ele se recusou a sair do quarto e se encontrar com Paul McCartney, que tinha ido visitá-lo em 1974, conforme conta Kent. Paul foi embora sem ver Brian.
Brian sempre foi psicologicamente frágil. As surras e a cobrança por excelência do pai Murray Wilson (1917-1973), que também foi o despótico empresário dos Beach Boys nos primeiros anos, deixaram marcas profundas e permanentes na personalidade do sensível músico.
Kent estima que Brian aprendeu piano sozinho com 6 ou 7 anos de idade no instrumento na sala da família. E sua motivação inicial era impressionar seu pai bronco, um compositor frustrado.
Em 1966, Brian lançou sua grande cartada na competição criativa e comercial que mantinha com os Beatles.
Com melodias lindas, arranjos que ligavam o pop-rock à música clássica e letras sensíveis, o álbum Pet Sounds era uma obra-prima instantânea, que botou o quarteto de Liverpool contra a parede.
McCartney considerou e ainda considera “God Only Knows” a canção pop mais linda já feita.
Em sua fase de depressão, o cérebro de Brian distorcia esse elogio: se ele já tinha feito a canção mais linda, então nunca mais conseguiria fazer algo melhor, portanto estava acabado, de acordo com o relato de Nick Kent.
A resposta dos Beatles foi com o impecável e experimental Revolver, cerca de cinco meses depois de Pet Sounds.
Brian, que vinha fumando bastante maconha naquele período, sentiu que precisava superar aquilo com “o maior álbum de todos os tempos”, que ele já batizou antecipadamente de SMiLE, previsto para 1967.
Para o futuro álbum, até trocou de letrista. Dispensou Tony Asher e passou a compor com Van Dyke Parks (1943-), que escrevia de forma mais floreada que o letrista de Pet Sounds.
Naqueles dias em que os hippies pareciam dominar o mudo, parecia mais adequado.
Só que é nessa época que o LSD (ácido lisérgico) entra na equação. Brian passa a ser lento e indeciso no estúdio. Quase nunca consegue dar forma final a uma faixa, ambicionando sabe-se lá que tipo de perfeição.
E veio o golpe. Em junho de 1967, os Beatles lançaram Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, álbum tão revolucionário na época que parecia uma bíblia para a juventude do Ocidente.
Brian desmoronou. Tentou destruir todas as fitas que gravou para SMiLE, cancelou o disco e mergulhou numa depressão paralisante e tão profunda que seria um grande problema pelo resto de sua vida.
Só nos anos 1980 ele voltaria a ser razoavelmente funcional após tratamentos psiquiátricos de longo prazo, embora com sequelas psicológicas duradouras.
Em 2004, pude observar Brian em seu belíssimo show em São Paulo. Minha sensação foi de uma pessoa reprogramada para funcionar em sociedade.
Assim que acabava uma música, Brian tirava as mãos do piano e as repousava mecanicamente sobre os joelhos.
Ao começar outra música, ele retornava as mãos ao teclado e tocava com a desenvoltura de um ser humano pleno e do músico natural que foi (hoje ele está tomado pela demência e não toca mais desde 2022).
Lágrimas do maestro
Mas note que a história que Kent contou não é deprimente. Ele recapitula toda a vida de Wilson e o sucesso dos jovens Beach Boys com músicas sobre surfe e carrões compostas por ele.
A banda era uma operação familiar. Além de Brian, contava com seus irmãos mais novos Dennis (1944-1983) e Carl (1946-1998), o primo Mike Love (1941-) e o amigão do bairro Al Jardine (1942-).
O empresário era, como já citado, o papai Murray Wilson. Quando Brian parou de fazer shows em 1964 depois do grande colapso nervoso, o baixista Bruce Johnston foi convocado para assumir as funções dele nos palcos.
Kent disseca o amor que o Brian adolescente sentia ao descobrir o rock'n'roll de Chuck Berry, os vocais cheios de harmonias de grupos brancos como The Four Freshmen e a batida do negro rhythm'n’blues.
Ele se perdia na música, como se fosse dissolvido e fizesse parte daqueles sons. Assim, começou a botar em prática o que apenas admirava. Era ótimo de ouvido, mesmo tendo perdido a audição de um deles graças a um tapão do pai anos antes.
O processo criativo de Pet Sounds ganha atenção especial de Kent, baseando-se no depoimento que Tony Asher deu a ele.
“É justo dizer que o teor genérico das letras era sempre dele [Brian] e a escolha final das palavras era quase sempre minha”, disse Asher. “Eu era o intérprete dele. Havia exceções à regra: pelo que me lembro, ‘Here Today’ tem um pouco mais de mim que de Brian, tanto na letra como na melodia. E eu também acho que inspirei ‘God Only Knows’”.
Nem tudo era pacífico no processo. Brian utilizava músicos de estúdio, mas os vocais tinham de ser dos Beach Boys. E o reacionário e mercantilista Mike Love implicou com a letra de “Hang On to Your Ego”, que ele garantia que a “garotada” fã da banda não entenderia aquela pataquada cabeça.
A letra acabou sendo modificada e a música foi lançada como “I Know There's an Answer”.
Asher diz que foi um alívio se distanciar do complicado mundo dos Beach Boys. Se era brilhante quando lidava com música, Brian deixava a bagunça tomar todos os outros aspectos de sua existência.
Kent também destaca a feitura de outra obra-prima, a faixa “Good Vibrations”, lançada em compacto no segundo semestre de 1966. A música seria carro-chefe do planejado álbum SMiLE.
“‘Good Vibrations’ era, na época, o grande plano de Brian Wilson já na velocidade dois", escreveu Kent.
O ótimo documentário sobre Brian que a emissora CBS levou ao ar em novembro de 1966 é relembrado com ênfase por Kent.
Ele apontou que a maravilhosa versão solo ao piano de “Surf's Up” (outra canção escalada para SMiLE) que Brian executou na sala de sua casa fez o lendário maestro Leonard Bernstein, apresentador do especial de TV, chorar fora do alcance das câmeras, comovido com tanta beleza.
Dali em diante, tudo se esfarelou. Kent reconstitui esses anos difíceis. Mas já deixou bem claro antes o quanto a arte de Brian Wilson foi maravilhosa enquanto sua cabeça e seus sentimentos permitiram.
P.S.: Há livros inteiros muito bons sobre Brian Wilson e os Beach Boys. Heroes and Villains: The True Story of the Beach Boys (edição original: 1986), de Steven Gaines, é uma ótima biografia.
Brian conseguiu reunir as lembranças que sua mente ainda guardava no livro I Am Brian Wilson: A Memoir, publicado em 2016.
Wouldn't It Be Nice: Brian Wilson and the Making of the Beach Boys' Pet Sounds (2016), de Charles L. Granata, conta tudo sobre a produção e a influência duradoura do álbum Pet Sounds (1966), obra-prima não só dos Beach Boys, mas de todos os 70 anos da música pop-rock.
O álbum SMiLE, abortado em 1967, recriado apenas por Brian em 2004 e finalmente lançado com as gravações originais numa versão oficial em 2011, já foi alvo de um livro, Smile: The Story of Brian Wilson's Lost Masterpiece (2005), de Domenic Priore.
E um novo livro, previsto para abril de 2025, volta a examinar o álbum perdido e seus desdobramentos. É SMiLE: The Rise, Fall, and Resurrection of Brian Wilson, de David Leaf.
Nossa, pago muito pau por esse aí.
Tenho esse livro há anos e nunca li. Vou encarar