Bettie Page: as vidas da Rainha das Pinups
Livro de Richard Foster desvendou os anos de sumiço da modelo dos anos 50
Um livro lançado discretamente no Brasil em 2018 pela editora Noir conta a história da Rainha das Pinups dos anos 1950: Bettie Page (The Real Bettie Page: The Truth About the Queen of the Pinups, 1999), do jornalista americano Richard Foster.
Esta biografia não autorizada de Bettie Page (1923-2008) esmiúça a vida dela muito além das centenas de fotos (e alguns filmes mudos) de erotismo ludicamente pervertido ou em poses mais pudicas que influenciaram a cultura pop.
Foster disseca não só os anos de aspirante a atriz e, depois, de modelo de destaque como desvenda o que aconteceu com Bettie em suas três décadas de sumiço e rejeição do passado de modelo.
As histórias incluem abusos, casamentos frustrados, internações, fanatismo evangélico, problemas com a polícia e momentos de depressão ou loucura.
Loucura como a da cena de abertura do livro, na qual, em 1982, Bettie acorda a dona da casa em que morava com uma faca apontada para a garganta e a justificativa de que Deus tinha mandado fazer aquilo.
Paranóica, a ex-modelo vinha achando que a proprietária da casa andava querendo saber demais sobre sua vida.
Bettie fez as pazes com a vida real e com sua fama de pinup apenas nos anos 1990. A primeira entrevista que deu foi para Richard Foster, em 1992.
Depois disso, não se expôs demais, mas concedeu entrevistas não presenciais e compareceu a um ou outro evento, quase sempre em sua homenagem.
Àquela altura, a referida fama tinha crescido nos anos 1980 com o uso de sua imagem na arte erótica de Robert Blue (1946-1998) e Olivia De Berardinis (1948-), e em quadrinhos como Rocketeer, de Dave Stevens (1955-2008), e outros mais underground.
Havia “Betties” disfarçadas no cinema, como a Lulu de Melanie Griffith em Totalmente Selvagem (Something Wild, 1986). E Page também inspirava músicas e bandas com sabor de rock’n’roll dos 50s — a banda The Cramps é apenas o exemplo mais notório.
Foi justamente em meados dos anos 1980 que vi uma imagem de Bettie pela primeira vez. Era uma ilustração de Robert Blue numa nota que informava sobre o livro The Blue Book na finada revista Status (da hoje também finada Editora Três), então a principal concorrente da Playboy no Brasil.
Poucos anos depois, vim a descobrir que a moça das artes de Robert Blue não era uma personagem inventada, mas uma pessoa de verdade. Foi através de uma longa reportagem de 1989 da revista americana Rolling Stone que registrava a existência do culto a Bettie e ainda não sabia sobre seu paradeiro.
O título da matéria, assinada por Ira Steven Levine, era “Bettie Page: The Case of The Vanishing Pinup” (“O caso da pinup desaparecida”).

Àquela altura, reproduções das fotos de Bettie Page dos anos 1950, que eram consideradas perdidas desde aquela década, já circulavam intensamente entre os interessados (o que só iria aumentar com a chegada da internet nos anos 1990).
Não só voltaram a circular como passaram a influenciar com sua inspiração retrô: muito do visual de Bettie, como sutiãs pontudos e apetrechos fetichistas foram utilizados pela cantora Madonna, principalmente em sua fase do álbum Erotica (1992) e do livro Sex (1992).
Desde então, outras estrelas pop — como Beyoncé, Lady Gaga e Katy Perry — enveredaram por esse caminho (algumas mais jovens talvez sabendo quem é Madonna, mas não quem foi Bettie Page).
A trajetória de Bettie
Bettie começou a modelar no fim dos anos 1940 para revistas de pinups cujo teor hoje parece até inocente. Ela se destacou pelo jeitinho maroto e expressivo que passava em suas fotos.
Na busca de mais trabalhos, foi contatada e contratada pelo pequeno empresário Irving Klaw (1910-1966), que começou sua loja Movie Star News, em Nova York, vendendo apenas fotos de estrelas de Hollywood.
Mas Klaw descobriu um nicho lucrativo ao atender uma encomenda especial de um cliente que desejava fotos de donzelas em apuros amarradas em cenas de filmes de detetives de Hollywood. Como isso era raro de aparecer, Klaw logo tratou de produzir as próprias fotos seguindo o estilo pedido.
Logo, Klaw passou a comercializar — na loja e pelo correio — suas próprias produções de BDSM leve para uma exclusiva freguesia interessada. Atendendo ao desejo de outros clientes, as cenas simulando filmes de detetive logo deram lugar a modelos usando lingerie e roupas fetichistas de couro.
Para quem ganhava a vida como secretária e não dava sorte em seus testes para ser atriz de cinema ou TV, o trabalho de modelo já era bom e só ficou melhor com a associação a Klaw e suas poses apimentadas de dominatrix, submissa ou rainha da selva.
Era muito proveitoso para a senhorita Page. Pagava-se bem, o empreendimento era familiar (a fotógrafa era Paula Klaw [1920-1996], a irmã de Irving), não havia assédio sexual no estúdio e havia o maior cuidado para não aparecer nenhum pedaço da anatomia que pudesse sugerir sexo de forma mais explícita.
Qualquer foto que pudesse ser associada a pornografia implicaria em cadeia para os envolvidos, especialmente porque o material era enviado pelos correios.
As pantomimas sadomasô registradas no estúdio de Klaw supostamente seriam apenas fantasias, não pornografia. Pelo menos era o que ele achava.
O maior sacrifício de Bettie era mesmo se equilibrar nos saltos altíssimos quase impossíveis para andar, estalar um chicote nas poses de dominadora ou passar alguns minutos amarrada e amordaçada na versão submissa.
A diferença dela para outras modelos de Klaw era uma certa canastrice bem-humorada, que fazia com que toda aquela pose de dominatrix ou de donzela indefesa não fosse levada tão a sério.
As expressões de Bettie tiravam o peso do material e sugeriam que era tudo apenas diversão, mesmo que fora do padrão vigente dos moralistas dos EUA nos anos 1950.
Como a internet registra, existem fotos de nudez bastante explícita de Bettie, mas que não foram feitas pelo estúdio de Klaw.
Segundo o livro de Foster, essas fotos mais picantes foram feitas em sessões particulares organizadas por ricaços adeptos de fotografar mulheres nuas.
Ela também posou nua, mas sem mostrar partes íntimas, para um pôster da edição de Natal de 1954 (chegada às bancas: dezembro de 1954; mês escrito na capa: janeiro de 1955) da revista Playboy americana
Bettie posou como uma brejeira Mamãe Noel. Talvez seja o momento mais mainstream que teve em seus dias de modelo, saindo numa revista masculina de grande circulação nacional.
Investigação parlamentar
Voltando ao trabalho principal de Bettie, o fim começou em 1955, quando uma comissão parlamentar aberta pelo senador Estes Kefauver (1903-1963) passou a investigar o mercado secreto de pornografia – o que, para o político, incluía as pinups “diferentes” de Irving Klaw.
Bettie chegou a ser intimada a depor, mas teve seu testemunho descartado pelo senador antes mesmo de acontecer.
Já Irving Klaw conseguiu escapar de qualquer punição pela justiça ao se comprometer a destruir todo o material que tinha arquivado, incluindo os negativos.
Daí nasceu a lenda de que as fotos de Bettie que ressurgiram décadas depois eram raridades clandestinas – de certa forma, eram; mas muitas vinham de reproduções pelos proprietários de tal material de fotos avulsas ou de revistas editadas por Klaw.
Além de Klaw, Bettie posou para o fotógrafo e ex-comediante do cinema mudo Harold Lloyd (1893-1971). Também manteve uma parceria com a fotógrafa e modelo Bunny Yeager (1929-2014) durante suas viagens para a Flórida. Essas fotos são as mais alegres e ensolaradas (em mais de um sentido) da carreira da pinup.
Na maioria, as fotos de Bunny são poses de biquíni na praia, com apelo mais inocente. Às vezes, rolava topless. E, em estúdio, alguma nudez. Mas o material é apenas provocante, sem os fetiches do que ela fazia com Irving e Paula Klaw.
Porém, Bettie se aposentou da modelagem em 1957, mudou-se para a Flórida e, por volta de 1962, sumiu do mapa. Esse longo período de rejeição do passado (que durou cerca de 30 anos) é reconstituído no livro de Foster.
Convertida ao cristianismo evangélico, chegou a trabalhar para o reverendo Billy Graham (1918-2018), um pioneiro da pregação televisiva (na década de 1970, a TV Tupi exibiu por alguns anos seu programa As Cruzadas de Billy Graham no Brasil).
Os tempos obscuros de Bettie no livro de Foster servem para ilustrar a diferença entre imagem e vida real. A pinup eternizada em cliques de décadas anteriores (e apreciada por isso) vivia cheia de perrengues financeiros, amorosos e psiquiátricos — foi diagnosticada com esquizofrenia.
Quando a senhora Page finalmente passou a admitir e assumir seu passado de modelo, até chegou a faturar algum dinheiro pelo resto da vida com sua marca estabelecida.
Mas a magia hipnotizante de Bettie Page já estava consolidada bem antes disso. Pelo menos, ela conseguiu desfrutar um pouco da imagem que construiu antes de ser tirada do jogo pelos moralistas de ocasião.
P.S. 1: Algumas fontes creditam o livro de Richard Foster como a inspiração para o filme Bettie Page (The Notorious Bettie Page), produção de 2005 da HBO Films com a atriz Gretchen Mol interpretando a pinup.
Contudo, o nome do jornalista não consta nos créditos oficiais registrados no IMDb, o maior site sobre a indústria cinematográfica mundial.
Os créditos de roteiro são da diretora Mary Harron e da produtora executiva Guinevere Turner. Nada de “baseado em livro de Richard Foster” no IMDb.
P.S. 2: A tradução da edição brasileira é de René Ferri, que também escreveu um posfácio. Ferri foi, por muitos anos, dono da lendária loja de discos Wop Bop, no centro de São Paulo. Onde comprei em 1988 ou 1989 meu Surfer Rosa, dos Pixies. Usado.