Anthony Burgess: laranja enguiçada
Escritor de Laranja Mecânica decepciona como analista de música pop
Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1962), a distopia sarcástica do escritor inglês Anthony Burgess (1917-1993), é um dos meus livros prediletos desde a adolescência. Até redação de escola eu fiz sobre ele – a professora achou meio, hum, “diferente”...
Só vi o filme homônimo de 1971 dirigido por Stanley Kubrick (1928-1999) alguns anos depois e penso até hoje que não se compara ao livro, embora tenha sido bastante por causa dele que a obra de Burgess ganhou status de clássico pop da literatura.
Cheguei a ler outros livros de Burgess e, até onde posso me lembrar, gostei, mas nenhum era um Laranja Mecânica.
Por causa dessas leituras do passado, fiquei interessado quando me deparei com The Devil Prefers Mozart: On Music and Musicians, 1962-1993, compilação de artigos de Burgess sobre música, principalmente a clássica. O livro foi publicado no Reino Unido em março de 2024.
Como música clássica não é meu terreno, vou me abster de falar sobre o que ele escreveu sobre grandes compositores ou sinfonias. Vale citar que Burgess, antes de se tornar escritor, estudou música e tentou a sorte como compositor de peças clássicas.
Mas há também artigos de Burgess sobre música pop. E é neste endereço que mora o problema.
Vou começar contextualizando que Burgess era um inglês católico nascido em Manchester.
Embora na vida adulta tenha tentado negar que ainda fosse um fiel da Igreja Católica Apostólica Romana, sempre demonstrava sua preocupação com os rumos da maior religião cristã.
Um dos textos do livro, escrito em 1978, até fala da eleição do papa João Paulo II (1920-2005) antes de tratar da prisão de Sid Vicious (1957-1979), dos Sex Pistols, por matar a namorada Nancy Spungen (1958-1978).
O que o catolicismo de Anthony Burgess tem a ver com seus escritos sobre pop?
Tem a ver porque Burgess, apesar de não ser carola e quase sempre dar um toque de humor em seu trabalho, demonstra um conservadorismo em relação ao pop que também pode ser creditado a um conflito de gerações – algo que ele próprio admite.
O negócio é que, seja falando de Beatles, punk ou heavy metal, ele esbarra no reacionarismo, praticamente minimizando a importância da música pop diante dos clássicos que ele considerava a verdadeira arte.
Logo no primeiro texto do livro, “The Writer and Music” (sobre música clássica e escritores), Burgess descreve o processo de composição e demonstra como admira o ofício dos classicistas:
“A composição de uma ópera ou sinfonia é um trabalho extremamente duro, e apenas um romancista se dispôs a descrevê-lo – Thomas Mann. Seu Doutor Fausto é o único romance de alguma importância a criar um compositor realmente crĩvel. Seu nome é Adrian Leverkühn e não apenas somos informados de sua grandeza, ela nos é demonstrada: suas obras são rigorosamente analisadas; nós quase conseguimos ouvi-las. E o cheiro da tinta, a longa agonia do arranjo orquestral, são desenvolvidos no livro”.
Já no artigo-título “The Devil Prefers Mozart”, de 1990, Burgess aborda o heavy metal em particular e o rock em geral desta forma:
“O problema com o heavy metal é que sem a batida insistente, enormemente amplificada, não resta muita coisa. E, na verdade, pouco do rock resiste muito tempo. Seus compositores, se podemos chamá-los assim, não adquiriram a habilidade de desenvolver seu material por mais de um minuto, mais ou menos. Os tambores da selva [...], que são esmurrados pelo ũnico propósito de estimular uma espécie de frenesi religioso, são tocados por horas. O rock parece fazer apenas isso”.
Nada lisonjeiro.
Para aliviar um pouco, Burgess até concede que a Nona Sinfonia de Beethoven ou o Bolero de Ravel poderiam causar ataques de insanidade se tocados em volume altĩssimo como o das bandas de heavy metal. Mas o estrago já foi feito.
O punk rock e a banda Sex Pistols não merecem sorte melhor nos dois textos em que são abordados:
“Eles gravaram discos que foram prontamente proibidos por causa de seu conteúdo obsceno; a rejeição era esperada e até bem-vinda como prova de que o punk era punk de verdade. Os Sex Pistols se tornaram o grupo de rock mais famoso na Grã-Bretanha antes de dar um único tiro”.
“O movimento punk se manifesta principalmente pela música, no sentido de canção e da maneira de tocar essa canção. A canção é sobre desafiar a sociedade, mas é também sobre desafiar os antigos desafiadores da sociedade”.
“Aquele que grita loucamente contra a ordem estabelecida se torna um bobo da corte”.
“O ponto é que o punk é pobre, não pode se permitir o surrealismo intelectual dos Beatles ou seus flertes com Stockhausen”.
Para antagonizar o punk, Burgess chega a rejeitar sua obra mais famosa:
“Noto com algum choque que meu nome vem sendo associado com o movimento punk britânico, e que o New York Times até me chamou de seu padrinho. Isso se dá por causa de um romance que escrevi há uns 17 anos chamado Laranja Mecânica, um livro para o qual nunca liguei muito. Quando esse romance é mencionado pela imprensa, quase sempre é do filme de Kubrick que se fala. Ele apresentava um estilo de vida delinquente altamente memorável [...], mas não creio que tenha algo a ver com punk”.
Burgess também solta farpas ocasionais a outros astros do rock (“as extravagâncias eletrônicas que moldam as músicas de David Bowie”) e comete o erro de grafia mais herético da cultura pop ao chamar Mick Jagger, dos Rolling Stones, de “Mike Jagger”.
“Mike Jagger” é um erro tão gritante que chego a conceder o benefício da dúvida e achar que Burgess estivesse apenas de sacanagem com o vocalista dos Stones.
E, apesar de reconhecer as proporções que os Beatles alcançaram quanto à popularidade, Burgess é frequentemente irônico e minimiza a competência dos quatro rapazes de Liverpool como músicos e compositores.
Quando escreve mais de uma vez no livro sobre a intelectualidade que os Beatles alcançaram, há um quê de maledicência nisso. Como se eles não pudessem ter evoluído dos adolescentes rústicos que foram para os artistas complexos da fase de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
Na visão de Burgess, os Beatles dobraram os ouvintes mais exigentes com sua popularidade incomparável:
“A adoração popular, principalmente entre os jovens, logo fez com que os crĩticos enxergassem sagacidade, originalidade e melodiosidade onde antes tinham ouvido apenas banalidade. O talento musical era considerável, apesar de sem estudo”.
Quisera entender mais de música clássica para ler com uma lente questionadora os outros textos de The Devil Prefers Mozart que não falam de pop. É provável que Burgess seja mais criterioso e justo ao falar do que realmente gosta. E, sim, há coisas interessantes nesses textos sobre os clássicos.
Só que, ao escrever sobre pop, Burgess decepcionou. A laranja mecânica enguiçou.
Mike Jagger, hahahahaha. Marcelo, que doidera esse livro. Fiquei tentada a lê-lo só para compartilhar tua indignação, haha.