A vida do obscuro bluesman punk
Finalmente uma bio do influente mas pouco conhecido Hound Dog Taylor
Gostar de um artista obscuro cria o problema: nem sempre se consegue obter muita informação quanto se gostaria. Era meu caso com o bluesman Hound Dog Taylor (1917-1975).
Após três décadas de admiração por sua música e alguns fatos básicos conhecidos através de um encarte de disco e internet, fui salvo recentemente ao descobrir que, em novembro de 2022, foi publicada sem maior alarde nos EUA a biografia Goodnight Boogie: A Tale of Guns, Wolves & the Blues of Hound Dog Taylor, de Matt Rogers.
Corri atrás e finalmente pude ter o quadro completo da existência do bluesman obscuro, mas influente. Hound Dog foi praticamente um inventor do que podemos chamar de blues punk.
Seu som era sujo, alto, cru, distorcido por volume dos amplificadores e pela qualidade da guitarra japonesa de baixo custo de Hound Dog, cheio de ritmo.
O visual era de quem acabou de sair do trabalho. E a formação era inusitada (duas guitarras e bateria, sem contrabaixo). Tudo bem longe do refinamento de um B.B. King.
Hound Dog considerava que suas músicas mais lentas eram blues e as rápidas eram rock'n'roll. Mas era tudo blues mesmo, independentemente do andamento.
Seu trio Hound Dog Taylor & The HouseRockers foi chamado de "Ramones do blues" por Robert Christgau, mestre da primeira geração de críticos de rock, ainda na ativa após 57 anos de carreira.
Já houve alguma influência de Hound Dog em bandas de rock alternativo dos anos 1980. Mas, a partir da mesma década de 1990 em que descobri Hound Dog através de um CD comprado baratinho (Genuine Houserocking Blues), outras novas bandas adotaram o conceito de fazer barulho sem contrabaixo.
The Gories, Jon Spencer Blues Explosion, White Stripes e The Black Keys (sem uma segunda guitarra!) absorveram o estilo Hound Dog.
O trio de Jon Spencer até fez cover de "Let's Get Funky" no início da carreira. E o Black Keys foi quem mergulhou mais fundo, como seu guitarrista-vocalista Dan Auerbach demonstra em seu apaixonado prefácio escrito para Goodnight Boogie.
A Ku Klux Klan bate à porta
O primeiro capítulo de Goodnight Boogie traz um momento de vida ou morte decisivo para Hound Dog. Em 1942, sua casinha em Tchula (um fim de mundo no estado do Mississippi que foi apontada na época como a comunidade mais pobre dos EUA) foi cercada pelos membros encapuzados da Ku Klux Klan.
Os membros da organização racista bateram à porta de Hound Dog quando já tinham deixado sua enorme cruz em fogo intenso. O bluesman teria se engraçado com a mulher branca de um dos KKK num bar. E agora iria pagar com a vida por isso.
Hound Dog teve a presença de espírito de fugir pelos fundos e se embrenhar pela mata. Ficou escondido por um tempo e foi para uma estação de trem. Ali, iniciou sua jornada até chegar a Chicago, repetindo o caminho feito (com ou sem ameaça da Klan) por tantos outros negros pobres do sul dos EUA.
A história dele segue uma espécie de padrão de outros bluesman da primeira metade do século 20.
Ele e outros passaram por: nascimento na região do delta do rio Mississippi; colheita de algodão por salário de fome e condições de quase escravidão; aprendizado de um instrumento (violão/guitarra na maioria das vezes) para tocar e cantar blues; mudança para Chicago no norte industrializado; carreira desenvolvida nos muitos bares de blues da cidade e discos feitos por uma de suas gravadoras…
O autor Matt Rogers é taxativo que o futuro Hound Dog nasceu Theodore Roosevelt Taylor em 1917, embora algumas fontes na internet digam que foi 1915.
Porém, ele não consegue determinar a exata cidade em que Taylor nasceu. Até porque o bluesman dizia, dependendo da ocasião, que tinha nascido em alguma de três cidades diferentes no Mississippi.
Taylor ficou sem o pai Robert Taylor aos 3 anos - tinha morrido, segundo a mãe, mas o rapaz desconfiava que foi caso de abandono de lar. Seu padrasto o desprezava e era frio e bruto.
Aos 9 anos, Taylor foi expulso de casa pelo padrasto porque desobedeceu a ordem de voltar para casa depois do culto religioso dominical. O menino preferiu continuar conversando com uma garota e foi duramente punido. Encontrou abrigo na casa da irmã mais velha.
Sweet Home Chicago
Taylor aprendeu guitarra sozinho, segundo dizia, e começou a tocar nos juke joints do Mississippi. Após o incidente com a Ku Klux Klan, mudou-se para Chicago muito por causa do cenário de blues efervescente da cidade.
Enquanto ganhava uns trocados em vários empregos precários durante o dia, Hound Dog circulava com sua guitarra em busca de uma oportunidade para se apresentar em um bar de blues. Essa primeira chance demorou um tempão para acontecer.
Hound Dog cruzou com alguns dos futuros gigantes do blues – Muddy Waters, Howlin' Wolf, B.B. King – nessa época em que todos estavam batalhando para se firmar.
De Elmore James, virou amigo. Ambos eram adeptos do estilo slide guitar (um tubo de vidro ou de metal é usado para produzir um som escorregadio na guitarra) e cantavam com voz escancarada.
Mas Hound Dog reclamou por anos que Elmore tinha feito sucesso e se tornado lenda do blues gravando músicas que seriam suas, como "Dust My Broom", "It Hurts Me Too" e "The Sun Is Shining".
Como não existem gravações prévias de Hound Dog, a acusação baseia-se apenas em sua palavra. Mesmo assim, ele compareceu ao funeral do amigo Elmore, fulminado por um infarto em 1963 aos 45 anos.
Frustrações
Hound Dog nasceu com seis dedos (dois mindinhos) em cada mão. Em algum momento que nem o autor sabe precisar qual, amputou o dedo extra da mão direita por conta própria, ganhando uma previsível infecção.
Não se sabe se o trauma da infecção afetou, mas Taylor manteve o sexto dedo da mão esquerda, que não atrapalharia para tocar como o da mão direita.
Essa mão com seis dedos virou uma marca registrada de Hound Dog quando começou a gravar álbuns na década de 1970.
Antes dos álbuns, Hound Dog teve três experiências frustrantes com discos. Após 18 anos em Chicago, ele finalmente lançou um compacto em 1960. Vendeu quase nada. Um segundo feito em 1962, menos ainda.
Se as gravações deram em nada, a carreira nos bares era sólida, embora o dinheiro fosse da mão para a boca.
Hound Dog tinha desistido de ter um emprego há muito tempo. Vivia mesmo do blues e agendava os próprios shows. Assim financiou seus cigarros Pall Mall e o uísque barato Canadian Club, que consumia o dia inteiro.
E os shows nem sempre eram pacíficos. Podiam ter Hound Dog sacando uma navalha ou um revólver se pintasse alguma encrenca.
No livro, o cantor Tom Waits garante que presenciou uma ocorrência dessas:
“No South Side de Chicago, no Checkerboard Lounge, o último grande bluesman Hound Dog Taylor se apresentava para uma plateia desordeira e era incomodado por um bêbado na primeira fila. (...) Hound Dog sacou um revólver calibre .38, atirou no pé do bêbado, botou a arma de volta nas calças e concluiu a música. Já pensei muitas vezes em fazer isso, mas nunca tive coragem."
A banda certa
Duas coisas foram determinantes para ele nos anos 1960: encontrar os músicos certos para sua banda fixa e o interesse de uma geração de universitários brancos pelo blues.
O som típico de Hound Dog foi encontrado quando se uniu quase simultaneamente ao segundo guitarrista Brewer Phillips e ao baterista Ted Harvey. O trio assumiu o nome Hound Dog Taylor & The HouseRockers.
Seus longos shows cheios de ritmo nos bares se tornaram uma atração boca a boca. E logo os jovens brancos passaram a se aventurar pelo South Side (a região dos negros em Chicago) para ver Hound Dog.
Um deles foi Bruce Iglauer, que trabalhava na loja e pequena gravadora Delmark. Em 1970, Bruce ficou maluco com Hound Dog e quis gravar um álbum com ele.
Como bom funcionário, Bruce recomendou o bluesman para a Delmark. Nada feito. Então o jovem decidiu juntar seu dinheiro e gravar por conta própria o trio tocando ao vivo no estúdio como se estivesse fazendo um show.
Para lançar o álbum, Iglauer fundou a gravadora independente Alligator, que se firmaria como referência de blues nos anos 1980.
O álbum Hound Dog Taylor and The HouseRockers, lançado em 1971, fez relativo sucesso, vendendo 9 mil cópias em alguns meses e chegaria a 15 mil em alguns anos – bom para o cenário de blues e para um selo minúsculo.
O disco também garantiu a Hound Dog participação em festivais e shows no circuito universitário de outros estados.
Natural Boogie, o segundo álbum, viria em 1973. E a banda gravou mais material pensando no terceiro disco.
Tudo parecia ir bem quando a última de várias brigas e desentendimentos entre Hound Dog e Brewer Phillips quase acabou em tragédia. O bluesman e chefe deu um tiro no guitarrista que, escapando ileso, decidiu nunca mais tocar com seu quase assassino.
Hound Dog tentou continuar com substitutos, mas isso durou pouco. Ele começou a apresentar problemas cognitivos devido ao consumo contínuo prolongado de uísque barato.
E os cigarros finalmente resultaram num câncer de pulmão em 1975. Hound Dog passou seus dias finais num hospital até morrer em dezembro do mesmo ano. Tinha 58 anos, de acordo com a idade determinada pelo autor de Goodnight Boogie.
O primeiro disco póstumo foi Beware of the Dog, gravado ao vivo em shows e lançado em 1976. E uma compilação de músicas que não entraram nos dois primeiros álbuns saiu em 1982: Genuine Houserocking Music. Aquele que comprei no escuro em 1993. E que ainda ouço com alegria mais de 30 anos depois.