A saga trágica de Simonal
Livro de Ricardo Alexandre conta bem a história do cantor que caiu em desgraça
Hora de falar de uma das melhores biografias musicais já escritas no Brasil, “Nem Vem Que Não Tem”: A vida e o veneno de Wilson Simonal, publicada em 2009, na qual o jornalista e crítico Ricardo Alexandre conta a tumultuada e, por fim, trágica vida do cantor Wilson Simonal (1938-2000).
Simonal é um personagem rico. Teve duas metades ligeiramente não iguais em anos. A primeira foi de luta para se firmar na carreira artística e finalmente conhecer a glória graças a seu talento musical raro.
Em 1969, pode-se dizer que Simonal era candidato sério a artista mais popular do Brasil – ou, pelo menos, se aproximava de Roberto Carlos (1941-).
A partir de 1971, veio a queda em desgraça, a outra metade da vida de Simonal.
Acusado de pedir a agentes ligados à ditadura militar que dessem um “corretivo” em seu contador (de quem desconfiava de desfalque), Simonal ganhou fama de dedo-duro do regime e foi cancelado numa escala ampla como poucas vezes se viu.
Toda a sua popularidade escoou pelo ralo em questão de meses. Passou o resto da carreira trocando de gravadora, fazendo discos que quase ninguém ouvia e mergulhando no alcoolismo amargurado que o levaria à morte.
Ricardo Alexandre cobre bem todas as fases de Simonal. Consegue dar a noção do talento do cantor que o levou ao auge.
Também dá pistas de que Simonal se deslumbrou com a fama. Sentia-se “o negro que chegou lá” – “lá”, no caso, o território dos brancos bem de vida.
E como não cair no pecado de se sentir por cima? De 1966 a 1970, Simonal foi uma das maiores atrações dos palcos e da TV brasileira. Badalado, paparicado, ímã de colegas e autoridades que queriam aparecer ao lado dele.
Sua voz era cheia de balanço e malandragem (tanto que o “gênero” que interpretava era chamado de pilantragem) nas músicas animadas, sensível em baladas românticas.
Comandava uma plateia com suas convocações a cantar em determinadas partes com uma maestria e um carisma que pouquíssimos têm.
Foi isso que ele fez em sua memorável apresentação para um Maracanãzinho abarrotado em 1969, formando um enorme coro popular para cantar a cantiga “Meu Limão, Meu Limoeiro” com ele.
Simonal fez história numa noite em que a atração principal era para ser Sérgio Mendes (1941-2024).
Seu prestígio era tamanho que até capas de revistas da editora Bloch (que publicava Manchete, Fatos & Fotos e Amiga) ele fez posando com Pelé (1940-2022). E foi um agregado à delegação do Brasil na Copa do Mundo de 1970, no México, onde ele fez apresentações. Também foi parceiro de Pelé numa campanha publicitária da Shell.
A parte da Copa de 1970 é hilária. Pela amizade e por ele estar sempre por perto, os craques e a comissão técnica da Seleção deixaram que Simonal disputasse um treino atuando pela equipe titular.
Por incrível que pareça, Simonal realmente acreditou que tinha chances de ser convocado e participar da Copa como jogador! Quem sabe no lugar do Jairzinho (1944-)...
Quando ele desabou de cansaço e quase sem ar no meio do treino, as risadas dos jogadores lhe revelaram a triste realidade: foi apenas uma brincadeira.
Depois disso, acabam os momentos divertidos. A parte do caso com a surra no contador Raphael Viviani também é bem contada e documentada.
O autor até mesmo entrevistou o referido contador para saber seu lado da história – ele negou veementemente que algum dia tenha desviado dinheiro de Simonal e morava em condições humildes.
Os anos de decadência de Simonal também merecem um olhar aproximado. É um longo trecho do livro que causa angústia, melancolia e um certo constrangimento.
A luta inglória do cantor para provar que nunca foi informante da ditadura chega a ser comovente pelo esforço, mas ninguém estava prestando atenção no que ele tinha a dizer.
A cena em que Simonal assiste escondido a um show de seu filho Simoninha para “não prejudicar a carreira do garoto” desperta uma compaixão enorme
Tenho uma visão pessoal de que Simonal, muito provavelmente, nunca dedurou ninguém do meio artístico (ou não) para a ditadura. Ninguém de esquerda, ninguém.
Mas possivelmente se sentiu “amigo dos ‘homens’” de forma desproporcional e por isso pediu para uns “amigos” com know-how da repressão para fazer seu contador confessar o suposto desvio de dinheiro seu.
O que se interpretou do ocorrido na época, a pior fase da repressão do regime militar: se era assim com os “homens”, então Simonal só podia ser dedo-duro da ditadura, entregando todo mundo que era de esquerda no meio artístico.
É clássico um cartum de 1971 do jornal humorístico O Pasquim que tinha apenas uma enorme mão fechada com o indicador apontando e um pequeno texto fazendo referência a Simonal.
Daí em diante, ele apanhava do jornal semanalmente em cartuns ou matérias. E, como O Pasquim era bem popular à época, a fama do dedo-duro pegou.
Bom ao falar de música e bom ao falar da parte humana, “Nem Vem Que Não Tem” é um livro de muito respeito que merece ser lido a qualquer momento, mesmo tantos anos depois de sua publicação original.
Uma das melhorias biografias que já li. Excelente lembrança.